quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Nova entrevista de R. Sherard a J. Verne em 1903

Uma nova visita a Júlio Verne

por

Robert H. Sherard

Entrevista publicada no jornal T.P.’s Weekly no dia 9 de outubro de 1903.

Esta entrevista é uma das mais conhecidas. Os estudiosos vernianos se referem a ela constantemente e tem sido reproduzida em múltiplas ocasiões, tanto nos estados Unidos quanto na Europa. Surgiu no periódico T.P.’s Weekly no dia 9 de outubro de 1903.
O jornalista Robert Sherard já havia visitado Verne em Amiens, pela primeira vez em 1889, acompanhado de Nellie Bly, a mulher que havia tentado repetir o feito de Phileas Fogg.
Uma segunda vez em 1893, quando realizou a entrevista publicada em janeiro de 1894 no McClure’s Magazine. E foi um rumor que corria o que o levou pela terceira vez a Amiens. A entrevista que aqui se reproduz tem como objetivo assegurar aos leitores, cerca de um século depois, o prazer de desfrutar o testemunho do único jornalista que visitou Verne por três ocasiões.

Robert Sherard

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Durante o mês passado certos rumores têm alarmado um grande número de seguidores, em todo o mundo, da obra de Júlio Verne. Diz-se que está quase cego. Sabemos que para ele viver é trabalhar, ainda que seja um homem muito idoso e sua situação atual pareça extremamente precária.

Recuperei o fôlego ao saber que as coisas não andavam tão mal como eu temia. É certo que um de seus olhos já não pode ver, mas ainda consegue enxergar um pouco com o outro.

É uma catarata em meu olho direito” – me disse essa manhã, na sala de sua casa, situada no número 44 do Boulevard Longueville, na cidade de Amiens – “mas o outro olho ainda está em boas condições. Não quero arriscar-me em uma operação, porque ainda posso ver o suficiente para fazer um pouco do meu trabalho diário, escrever um pouco e ler por alguns instantes. Lembre que sou um homem velho, já passei dos setenta e seis anos. Desde que as notícias de meus problemas de visão foram dadas, as mais simpáticas manifestações à minha pessoa têm surgido de todas as partes do mundo. Muitos me enviam maravilhosos remédios para as cataratas. Eles me pedem para que não opere, que esses medicamentos me curarão sem perigo. São muito amáveis. Tenho tido muitas emoções por esses dias, mas sei, evidentemente, que uma operação é a única esperança de cura”.

Sala da sua casa na Boulevard Longueville


Uma vida caseira e confortável

Não via Júlio Verne há quase quatorze anos. A última ocasião em que me encontrei a seu lado foi quando lhe apresentei Nellie Bly e a levei à sua casa, logo depois que ela terminara sua famosa volta ao mundo com o objetivo de quebrar a marca dos mágicos oitenta dias. Ainda sim, não o encontrei tão envelhecido quanto eu esperava. Parecia sentir-se bastante confortável, agasalhado em seu traje negro e seu bonito rosto, pelo qual se estendia a barba de cabelos brancos, luzia ora sereno ora animado, dependendo do momento. Seu olhar magnífico não mostrava de modo algum o mal que o ameaçava.

Está morando agora em uma casa menor, porém opulenta e valiosa, e uma confortável vida caseira o rodeia. Quando conversamos e ele admite alguma desvantagem pessoal devido às circunstâncias e à inevitável lei da Natureza, se apressa, sempre com sua alegria natural, em tratar de achar alguma compensação.


Anos de vantagem sobre seus editores

Ainda que podendo trabalhar muito pouco – realmente muito pouco, se compararmos com épocas anteriores – tenho uma vantagem de vários anos com respeito a meu contrato. Meu livro mais recente da série Viagens Extraordinárias deve ser publicado em breve, sob o título Bolsas de Viagens(1). Enquanto isso, existem outros treze manuscritos completos da mesma série que estão prontos para serem impressos. Como sabe, publico dois volumes por ano, que aparecem primeiro em capítulos no Magasin d’Èducation et de Recréation, do qual sou um dos fundadores. Estou trabalhando no momento em minha nova história, que não será impressa antes de 1910(2). Estou muito à frente, tenho muita vantagem. Por isso, não importa tanto que hoje trabalhe mais devagar, bem lentamente. Levanto-me, como de costume, às seis da manhã e fico trabalhando em meu escritório até as onze. Às tardes, como sempre fiz, vou à sala de leitura da Sociedade Industrial e leio tanto quanto meus olhos permitam.


Histórias sem títulos

Não posso dizer-lhe qual o título do livro que estou escrevendo agora. Ainda não o sei. Tampouco tenho título para nenhuma das outras treze histórias que estão esperando sua hora. Tudo o que posso dizer sobre meu último trabalho é que é algo sobre um drama na Livônia e que tenho incluído nele... bem, não, não deve escrever sobre isso em seu artigo, porque outro autor poderia tomar-me a idéia...(3)

Era inevitável, então, que falássemos sobre Herbert George Wells.
Sabia que ia pedir-me que falasse sobre esse tema” - disse - “Enviaram-me seus livros, e eu os li. É algo muito curioso, e devo acrescentar que é muito ao estilo inglês. Porém, não vejo possibilidade alguma de comparação entre seu trabalho e o meu. Não trabalhamos da mesma forma. Suas histórias não repousam em bases científicas. Não, não há nenhuma relação entre seu trabalho e o meu. Eu faço uso da Física, ele a inventa. Vou à Lua num projétil, disparado de um canhão. Não há aqui invenção alguma. Ele vai a Marte numa aeronave feita com um metal que anula a lei da gravidade. Tudo muito bonito, mas” – diz Verne, animadamente – “mostre-me esse metal. Que ele o fabrique”.


A ficção transformada em realidade

Também foi inevitável que eu me referisse ao fato de que muitas de suas invenções na ficção se converteram em realidade. Nesse momento da conversação a amável senhora Verne estava de acordo comigo.

As pessoas são suficientemente gentis para dizer que assim se passa” – disse Verne – “Estão lisonjeando-me, mas isso não é absolutamente correto”.
Não seja modesto, Júlio” – disse-lhe sua esposa – “E teus submarinos?
Não há relação” – responde Verne, rechaçando a adulação com um gesto.
Sim, há” - replicou a senhora Verne.
Não. Os italianos inventaram um submergível sessenta anos antes de Nemo. Não existe conexão entre meu submarino e os que existem agora. Estes últimos trabalham mecanicamente. Meu herói, Nemo, que é um misantropo que não deseja nada que venha da terra, toma sua força motora e produz a eletricidade que necessita tendo como fonte o mar. Há base científica para isso, pois o mar contém elementos que produzem a energia elétrica, assim como a terra tem os seus. O fato é que ainda não foi descoberto como se utilizar essa força, portanto não inventei nada.

O Nautilus de Verne

Os nomes na ficção

Abordamos em seguida o assunto da importância dos nomes em seus romances.
Sim, lhes concedo certa importância” - disse - “Quando encontrei o sobrenome Fogg, senti-me satisfeito e orgulhoso(4). Foi um grande êxito. Considerei um verdadeiro achado, porque a palavra fog significa “névoa, neblina” em inglês. Porém, foi especialmente o nome do personagem, Phileas, o que deu maior valor à criação. Sim, os nomes têm certa importância. Veja, por exemplo, como Balzac batiza seus personagens tão maravilhosamente.”

Havíamos começado nossa conversa nos ricos salões de sua residência, dois cômodos consecutivos, depois a sala de jantar e lá fora, um jardim cheio de flores, todo ensolarado. A casa era composta por opulentos quartos, com pesadas cortinas de veludo, grandes relógios e espelhos, retratos de corpo inteiro, cristais venezianos e nenhuma mesquinhez.

Naturalmente chegara a hora de subirmos as escadas para assim chegarmos aos aposentos de trabalho do escritor, que eram: um para leitura, onde estava a maior parte de sua biblioteca; e o outro para escrever, onde havia uma pequena mesa, uma caneta e a tinta.


Sem luxo

Tudo é muito simples aqui. Não há luxo. Vêem-se mapas nas paredes e, no quarto que o autor usa para escrever, podem-se ver vários quadros, entre os quais, uma aquarela com a imagem do Saint Michel, o iate com o qual, nos dias livres e ensolarados de sua inquieta juventude, Júlio Verne navegava pelas águas do mundo.

Começamos, então, a falar sobre sua produção e eu lhe disse, de modo bem americano, que ele devia ter escrito, pelo menos, uns bons três metros de livros. Ele riu calorosamente e fingiu medir a estante.

Oh, sim” - disse ele – “Já escrevi ao menos três metros. Veja também todos esses metros de traduções para o inglês, dinamarquês, italiano, enfim, todos os idiomas”.

Oito grandes prateleiras estavam cheias de livros com o mesmo nome em todas as capas.

Na penumbra do quarto ao lado, localizado junto à janela, se encontra uma pequena mesa de madeira branca, sobre a qual quase todos os seus livros foram escritos. Atrás do assento, pendurado na parede, se encontra um cachimbo.

Mas eles não me deixam fumar, agora” – lamentou Verne, com o mesmo tom com o qual George Meredith disse algo similar em uma ocasião, entristecido pela mesma causa.

Nesse quarto estão meus livros favoritos, aqueles que mais uso. Aqui encontrará toda a obra de Dickens” - disse Júlio Verne, com voz entusiasmada – “Como sabe, sou um apaixonado admirador de Dickens. Creio que possuía todas as qualidades: a inteligência cheia de humor de Sterne, do qual também sou grande leitor e admirador, toda a sensibilidade e nobres sentimentos e personagens, excelentes personagens. Era um escritor pródigo, tal como nosso Balzac, que criou um mundo sobre o qual se modelou a sociedade das gerações que se seguiram”.
 
Charles Dickens

Se alguém viesse a essa casa para sentir pena, seria em vez disso com inveja que voltaria ao cinzento e solitário mundo exterior. Pois além das cortinas de veludo estava a mesa sobre a qual se achavam dois lugares frente a frente, próxima à janela iridescente que dava para os jardins cheios de sol e flores. E diante da lareira esculpida, sobre a qual o samovar, rubro e resplandecente, sibilava sua nota de conforto e intimidade familiar, duas poltronas estavam postas lado a lado.

ANEXO

1. Bolsas de Viagens foi publicada no Magasin d’Education et de Recréation de janeiro a dezembro de 1903 e em livro em 1903 pela companhia editora Hetzel.
2. Trata-se do volume Viagem de Estudos, que se converterá em A Extraordinária Aventura da Missão Barsac em 1919. Os outros treze livros terminados são: Um Drama na Livônia (em 1 volume), A Agência Thompson & Cia. (2), Os Náufragos do Jonathan (2), O Segredo de William Storitz (1), O Vulcão de Ouro (2), O Piloto do Danúbio (1), O Farol do Fim do Mundo (1), A Caça ao Meteoro (1), A Invasão do Mar (1) e Mestre do Mundo (1).
3. Um Drama na Livônia foi publicado no Magasin d’Education et de Recréation de janeiro a junho de 1904, e como livro em julho do mesmo ano.
4. Verne, sem dúvida, teve a inspiração para o nome Fogg na novela de Dickens, As Aventuras de Mr. Pickwick.


Poderão encontrar a tradução desta entrevista para português de Portugal no site JVernePt.

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