A entrevista que se segue é uma raridade.
Realizada por R. H. Sherard em 1893 e publicada nos EUA em Janeiro do ano seguinte, permaneceu inédita na França até Outubro de 1990, ao ser publicada na "Magazine Littéraire".1
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Revela um homem no ocaso da vida, adoentado e sem esperança de obter o reconhecimento que sempre desejou na sua pátria, embora tenha, mesmo em vida, obtido uma legião de leitores tanto na Europa como na América. Sobretudo, revela um pouco do processo criativo do grande precursor da moderna FC ocidental, que inspirou muitos leitores e influenciou muita gente na procura de textos de ficção-científica. Nesse ponto é importante notar que Verne não era apaixonado por ciência, mas por avanços industriais, e principalmente por geografia. Viajar para ele, era a grande aventura. Os seus escritos evidenciam isso, e sua imaginação criava as condições técnicas para impulsionar a trama, dono de um espírito determinado, detalhista, grande leitor e preocupado em criar um estilo elegante, costumava anotar tudo o que achasse interessante para poder utilizar num conto ou num romance futuros. Essas qualidades tornaram-no num escritor que soube conferir verosimilhança às suas aventuras, que aliada ao ritmo, ao humor e à originalidade dos temas, fizeram de Júlio Verne um verdadeiro imortal Mesmo que a Academia Francesa o tenha esnobado, o que costuma acontecer com os autores de fantasia e congéneres. (Finisia Fideli)
"O grande desgosto da minha vida foi jamais ter sido reconhecido na literatura francesa."
Ao pronunciar estas palavras, ele baixou a cabeça e na voz calorosa e jovial soou uma nota de tristeza. "Eu não sou reconhecido na literatura francesa", repetiu. Quem era este senhor idoso que falava assim, cabeça baixa, uma nota de tristeza na voz cordial? Um autor qualquer de folhetins baratos e populares, um homem de letras qualquer que jamais teve escrúpulos em declarar que considera sua pena um instrumento de fabricar dinheiro e que sempre preferiu possuir um lugar de destaque na Academia de Letras, em vez da glória e da honra? Não, por mais estranho e monstruoso que possa parecer, não era outro senão Júlio Verne. Sim, Júlio Verne, o vosso e o meu Júlio Verne, que encantou o mundo inteiro durante anos e continuará encantando através das gerações futuras.
Foi no ambiente agradável da sala de estudos da Sociedade Industrial de Amiens, que o mestre pronunciou estas palavras, com uma tristeza que nunca mais esquecerei. Era como se confessasse uma vida malbaratada, o desgosto de um homem velho, sem retorno. Senti-me penalizado ao ouvi-lo falar assim, e tudo o que pude fazer foi dizer, com entusiasmo sincero que, para mim e para milhões de outros, ele era um grande mestre, objecto de a nossa admiração e do nosso respeito incondicional, o romancista que nos encanta muito mais do que qualquer outro. Porém, sacudindo a cabeça grisalha, ele repetiu mais uma vez:
"Eu não sou reconhecido na literatura francesa."
Setenta anos, sempre robusto e vigoroso, deixando de lado o facto de que manca, com uma fisionomia que lembra a de Victor Hugo: como um velho capitão, vida plena e tez colorida. A pálpebra desce ligeiramente, mas o olhar é resoluto e claro, e de toda sua pessoa emana uma impressão de bondade e gentileza que sempre foram as características daquele sobre quem há anos escreveu Hector Malot: "Ele é o melhor dos meus melhores companheiros"; este homem que o frio e reservado Alexandre Dumas ama como a um irmão, e que jamais teve um único inimigo, a despeito de seu brilhante sucesso. Infelizmente tem preocupações quanto à saúde. Nos últimos tempos sua vista diminuiu e há momentos em que é incapaz de escrever, e dias em que uma gastrite o martiriza. Mas continua valente como sempre.
"Escrevi 66 volumes e se Deus me der vida, chegarei a 80".2
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Júlio Veme mora na Av. Longueville em Amiens, esquina da Rua Charles Dubais, numa bela casa espaçosa que aluga. É uma casa de três andares, com três fileiras de cinco janelas que dão para a Av. Longueville, três para a esquina e três outras para a Rua Charles Dubois. As entradas - de carros e outros - estão nesta rua. As janelas da Av. Longueville dominam a vista magnífica da pitoresca mas brumosa Amiens, com sua catedral e outras construções antigas. Diante da casa, do outro lado da avenida, passa uma linha de estrada de ferro numa vala que, justamente em frente do escritório de Verne, desaparece sob um jardim público, onde se ergue um grande quiosque, no qual a fanfarra militar se apresenta quando o tempo está bom. Na minha opinião, tal associação constitui o distintivo do grande escritor: o comboio, com o zumbido e o estrépito do ultra-modernismo, e o romance da música. E não é graças a esta associação da ciência e do industrialismo com tudo o que há de mais romântico na vida, que os romances de Verne possuem uma originalidade que não se encontra em nenhum outro escritor vivo, mesmo entre os que são mais reconhecidos na literatura francesa?Um alto muro se ergue na Rua Charles Dubois, e oculta aos olhares do transeunte o pátio e o jardim da casa de Verne. Desde o instante em que bati à pequena entrada do lado e que em resposta ao carrilhão a porta se abriu, encontrei-me num pátio calçado. Em frente, a cozinha e as dependências comuns; à esquerda, um belo jardim ornado de árvores; e à direita, a casa, à qual conduzem largos degraus que se estendem pela fachada. Por uma varanda cheia de flores e de palmeiras, a porta de entrada dá ao visitante acesso ao salão. É uma peça ricamente mobilada, com mármores e bronzes, exuberante e rica decoração, poltronas bastante confortáveis - a peça de um homem abastado, que usufrui de jazeres, mas sem ostentação. Tem o ar de ser pouco utilizada, o que, aliás, é verdade. O Sr. e a Sra. Verne são pessoas bastante simples que de maneira nenhuma se preocupam com aparências, mas antes de tudo com a tranquilidade e o conforto. A grande sala de refeição, contígua, também raramente é utilizada, a não ser em ocasião de grandes jantares ou festas de família; o romancista e sua esposa habitualmente tomam suas refeições numa pequena peça ao lado da cozinha. Do pátio, o visitante pode notar ao lado da casa uma torre elevada. A escada que leva aos andares superiores está nessa torre, e no alto ficam os aposentos privativos do Sr. Verne. Um corredor forrado com um tapete vermelho, semelhante ao da escada, com desenhos de marinha e outros, leva a um pequeno cómodo de canto, mobilado com uma simples tarimba. Junto da janela fica uma pequena mesa, sobre a qual pode-se ver folhas de papel muito bem cortadas. Sobre a coluna de uma pequena chaminé estão duas estatuetas, uma de Molière e outra de Shakespeare, e mais em baixo está pendurada uma aquarela que representa um iate a vapor entrando na Baía de Nápoles. É neste cómodo que trabalha Verne.
A grande sala vizinha é uma biblioteca repleta de livros, cujas prateleiras vão do solo até o tecto.
Sobre o seu método de trabalho, Júlio Verne diz: "Levanto-me todas as manhãs antes das 5 horas - um pouco mais tarde, talvez, no Inverno e às 5 horas já me instalo na minha escrivaninha até às onze horas. Trabalho muito lentamente e com o maior cuidado, escrevendo e reescrevendo até que cada frase tome a forma que desejo. Sempre tenho na cabeça pelo menos dez romances em andamento, assuntos e intrigas tão bem preparadas que, veja, se Deus me conceder vida, poderei sem dificuldade terminar os oitenta de que falei. Mas é sobre as provas que passo a maior parte do tempo. Nunca fico satisfeito antes da sétima ou oitava prova, corrijo e torno a corrigir até que se possa dizer que a última prova traz apenas traços do manuscrito. O que supõe um grande sacrifício de "minha algibeira" como também do tempo, mas sempre aperfeiçoa a forma e o estilo, se bem que jamais alguém me faça justiça."
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Estávamos na biblioteca da Sociedade Industrial. Diante do Sr. Verne havia, de um lado, uma pilha de provas, "o sexto jogo", diz ele, e de outro um longo manuscrito que eu olhava com interesse, "mas", diz o romancista com um sorriso caloroso, "é um simples relatório que devo remeter ao conselho municipal de Amiens, do qual sou membro3. Interesso-me muito pelos assuntos da cidade".
Pedi ao Sr. Verne que me falasse de sua vida e seu trabalho e ele respondeu que me contaria coisas que nunca tinha dito antes. A primeira questão se referia à sua juventude e à sua família.
"Nasci em Nantes, 8 de Fevereiro de 1828. Portanto estou agora com 76 anos, e é sobre as minhas impressões da velhice que se deveria questionar, de preferência às lembranças da infância. Éramos uma família muito feliz. Meu pai, um homem admirável, era parisiense de nascimento ou, antes, por adopção, pois nasceu em Bril e foi educado em Paris, onde seguiu os estudos universitários e obteve o diploma de advogado. A minha mãe era de Morlaix, portanto tenho sangue bretão e parisiense ao mesmo tempo."
Estas particularidades são interessantes do ponto de vista psicológico e ajudam a compreender o personagem Júlio Verne, que une amor pela solidão, o lado religioso e a adoração pelo mar bretão, à jovialidade, ao saber-viver e à alegria de viver do grande citadino - "É um citadino completo" escreveu Claretie.
* * *
"Tive uma infância bastante feliz. Meu pai era procurador e advogado em Nantes e tinha uma boa situação. Era um homem culto e de gostos literários seguros. Escreveu canções numa época em que elas ainda se escreviam na França, isto, entre 1830 e 1840. Mas não era alguém que tivesse ambição e, se bem que ele se distinguisse com os escritos que tenha escolhido terminar, evitou de todas as maneiras a publicidade. Suas canções eram cantadas em família; poucas foram impressas. Reconheço que nenhum de nós é ambicioso. Procuramos ser felizes na vida e fazer tranquilamente nosso trabalho. Meu pai morreu em 1871, aos 73 anos." (Veja, ele poderia ter dito: "Tinha dois anos quando o século nasceu", para se distinguir da célebre nota de Victor Hugo sobre a data de seu nascimento.) "Minha mãe morreu em 1885, deixando 32 netos e, se contarmos os primos e primos-irmãos, 97 descendentes4. Todos os filhos viveram; ou, em outras palavras, a morte não levou nenhum dos cinco filhos. Dois rapazes e três moças, e ainda vivem. Na Bretanha as pessoas têm uma constituição forte. Meu irmão Paul era e continua a ser o meu amigo mais querido. Sim, posso dizer que não é somente meu irmão, mas também meu amigo mais íntimo. E a nossa amizade data do dia mais distante que eu posso recordar. Que passeios fazíamos juntos em barcos, pelas águas do Loire! Aos 15 anos tínhamos explorado todos os cantos e recantos até o mar. Como eram perigosos esses barcos e que riscos corríamos! Às vezes era eu o capitão, às vezes Paul. Mas Paul era o melhor de nós dois. Quando, depois, entrou para a marinha, ele poderia ter-se tornado um oficial de destaque se não fosse um Verne - isto é, se tivesse tido alguma ambição.
Comecei a escrever com a idade de doze anos. Unicamente poesia, horrível poesia. Todavia, lembro-me de uma mensagem que compus pelo aniversário de meu pai - o que na França chamamos cumprimento que acharam muito boa e fui tão felicitado que me senti orgulhoso. Lembro-me até que na época eu dedicava muito tempo aos meus escritos, recopiando e corrigindo e nunca verdadeiramente satisfeito com o que havia feito.
Suponho que se deve ver no amor que eu tinha pela aventura e pela água o que, mais tarde, iria orientar minhas tendências como escritor. É certo que o método de trabalho que tinha desde então permaneceu por toda a vida. Penso que jamais fiz um trabalho descuidadamente.
Não posso dizer que eu seja particularmente impulsionado pela ciência. Na verdade nunca fui, isto é, jamais segui estudos científicos, nem mesmo fiz experiências. Quando era jovem, porém, adorava observar o funcionamento de uma máquina. Meu pai tinha uma casa de campo em Chantenay, na embocadura do Loire, e ao lado existe a usina de Indret, que pertence ao Estado. Nunca fui a Chantenay sem entrar nesta usina e olhar as máquinas a funcionar, de pé durante horas. Este gosto me acompanhou por toda a vida e hoje sempre tenho prazer em olhar uma máquina à vapor ou uma bela locomotiva em velocidade, tanto quanto contemplar um quadro de Rafael ou Corrège. O interesse pelas indústrias sempre foi um traço marcante do meu carácter, tão marcante, bem entendido, quanto o meu gosto pela literatura, do qual falarei daqui a pouco, e quanto ao prazer que me proporcionam as belas artes, em cada museu ou galeria; sim, poderia dizer, toda galeria de arte, seja qual for sua importância na Europa. A usina de Indret, nossas excursões pelo Loire e os versos que eu rabiscavam constituíam os três principais prazeres e ocupações de minha juventude.
Fui aluno do Liceu de Nantes, onde permaneci até a classe de retórica, depois enviaram-me a Paris, para estudar Direito. A minha matéria preferida sempre foi a geografia, mas, na época em que fui para Paris, estava inteiramente absorvido pelos projectos literários; no mais alto grau a influência de Victor Hugo, bastante apaixonado pela leitura e releitura das suas obras. Podia recitar de cor páginas inteiras de Notre Dame de Paris, mas foram as peças de teatro que mais me influenciaram, e foi sob essa influência que aos 17 anos escrevi algumas tragédias e comédias, sem contar os romances. Por exemplo, escrevi uma tragédia em cinco actos, em verso, intitulada Alexandre VI, a tragédia do papa Borgia. Uma outra também em cinco actos, em versos, na mesma época, foi "La Conspiration des poudres", com Guy Fawkes como herói. "Un drame sous Louis XV" foi outra tragédia em verso, e como comédia fiz uma em cinco actos chamada "Les Heureux du Jour". Todo este trabalho era feito com o maior cuidado, uma preocupação constante quanto ao estilo. Sempre procurei esmerar-me no estilo, o que nunca foi reconhecido.
Retrato de Victor Hugo - um dos mais notáveis escritores franceses
Cheguei em Paris como estudante no momento em que a "costureirinha" e tudo o que isto implicava desaparecia do Quartier Latin. Não posso dizer que frequentava muito os quartos de meus companheiros de estudo, porque, você sabe, nós, os bretões, somos um povo de clã, e quase todos os meus amigos eram colegas de Nantes, que chegaram à Universidade de Paris ao mesmo tempo que eu. Quase todos eram músicos e, nesse período de minha vida, eu era eu-mesmo. Compreendia a harmonia e acredito que se tivesse me empenhado numa carreira musical teria tido menos dificuldades para progredir do que muitos outros. Victor Massé era um dos meus colegas. Delibes também, com quem tinha mais intimidade. Nós nos paparicávamos. Eram amigos que tinha feito em Paris. Entre os amigos bretões havia Aristide Hignard, um músico que, embora tenha obtido o segundo Prémio de Roma, jamais se sobressaiu. Havia colaboração. Eu escrevia as letras, ele a música. Compusemos uma ou duas operetas que foram encenadas, e canções.
Uma dessas canções, intitulada Les Gabiers, interpretada pelo barítono Charles Bataille, ficou muito popular na época. Lembro-me do refrão: 'Alerta,/Alerta, crianças, alerta,/0 céu é azul, o mar é verde,/Alerta, alerta.'
Um outro amigo da época de estudante, que se manteve depois, chamava-se Leroy, actualmente deputado por Morbihan. Mas, aquele por quem tenho a maior gratidão e afeição é Alexandre Dumas Filho, que encontrei pela primeira vez aos 21 anos. Tornamo-nos amigos logo em seguida ele foi o primeiro a encorajar-me. Diria mesmo que foi meu primeiro protector. Actualmente não o vejo mais, porém, enquanto viver não esquecerei a sua gentileza e a dívida que tenho com ele. Apresentou-me a seu pai; trabalhou em colaboração comigo. Escrevemos juntos uma peça intitulada "Pailles rompues", que foi encenada no Ginásio, e uma comédia em três actos, "Onze jours de siège", representada no Teatro de Vaudeville. Eu vivia então com uma pequena mesada enviada por meu pai e sonhava com a sorte, o que me levou a uma ou duas especulações na Bolsa. Preciso dizer que elas não realizaram meus sonhos. Mas tirei proveito das visitas assíduas aos bastidores da Bolsa, porque foi lá que aprendi a conhecer as peripécias do comércio, a febre dos negócios que utilizei nos meus romances.
Enquanto especulava na Bolsa, colaborava com Hignard nas operetas e canções, e com Alexandre Dumas nas comédias, e enviava novelas a magazines. A minha primeira obra apareceu em "Musée des Familles", onde você pode encontrar a história de um louco num balão, que marca o início da linha que estava destinado a seguir nos meus romances5. Era então secretário do Teatro Lírico, depois de M. Perrin. Eu adorava o palco e tudo o que havia ao redor e escrever peças é o trabalho que sempre me proporcionou o maior prazer."
"Estava com vinte e cinco anos quando escrevi o meu primeiro romance científico, Cinq semaines en ballon. Foi publicado por Hetzel em 18616 com sucesso imediato."
Neste momento interrompi o Sr. Verne: "Gostaria que me contasse como escreveu este romance, porque e qual foi o trabalho de preparação. O senhor conhecia o funcionamento de um balão ou tinha alguma experiência?
"Nenhuma", respondeu. "Escrevi "Cinq semaines en ballon" não como uma história centrada na ascensão em balão, mas, de preferência, na África. Sempre tive paixão pela geografia e pelas viagens, e queria fazer uma descrição romântica da África. Não havia nenhum outro meio de conduzir os meus viajantes através da África que não fosse o balão, eis porque o introduzi na história. Na época eu ainda não tinha subido, na verdade só viajei uma vez de balão. Foi em Amiens, muito tempo depois da publicação do romance7. Só "três quartos de hora num balão", porque um pequeno incidente ocorreu no momento da partida. Godard, o aeronauta, estava abraçando o seu filhinho, quando o balão se foi e tivemos que conservar o menino connosco, e o balão estava tão carregado que ele não pôde ir muito longe. Voamos até Longeau, no entroncamento ferroviário por onde você passou para chegar aqui. Posso dizer que na época em que escrevi esse romance, como ainda hoje, eu não acreditava na possibilidade de dirigir um balão, salvo numa atmosfera completamente estática, como nesta sala, por exemplo. Como se pode fabricar um balão capaz de enfrentar correntes que fazem seis, sete ou oito metros por segundo? É um sonho puro e simples, se bem eu acredite que, se a questão for resolvida um dia, será com uma máquina mais pesada do que o ar, segundo o princípio do pássaro, que pode voar embora seja mais pesado do que o ar que ele desloca."
"Então o senhor não possuía dados científicos em que se apoiar?"
"Nenhum. Direi mesmo, nenhum estudo cientifico, embora no decorrer de minhas leituras encontrasse muita coisa, aqui e ali, que tiveram a sua utilidade. Posso assegurar-lhe que sou um grande leitor e sempre tenho um lápis à mão. Trago sempre comigo um caderno, e como o personagem de Dickens, logo de início anoto tudo o que me interessa ou que poderá servir para os meus livros. Para lhe dar uma ideia: venho aqui todos os dias após a refeição do meio-dia, entrego-me imediatamente ao trabalho e leio do começo ao fim quinze jornais diferentes, sempre os mesmos quinze, e digo-lhe que pouca coisa escapa à minha atenção. Quando vejo alguma coisa interessante, anoto. Em seguida leio as revistas, como La Revue bleue, La Revue rose, La Revue des deux monde, Cosmos, La Nature por Tissandier, L'Astronomie por Flammarion. Leio também por inteiro os boletins das Sociedades Científicas e, em particular, os da Sociedade Geográfica, porque, note bem, a geografia é ao mesmo tempo a minha paixão e meu tema predilecto de estudo.
Possuo todas as obras de Reclus - tenho grande admiração por Elisée Reclus - e tudo de Arago. Leio também, e releio, pois sou um leitor muito atento, a colecção "Le tour du monde", uma série de narrativas de viagens. Até o momento acumulei muitos milhares de notas sobre todos os assuntos, e hoje tenho pelo menos vinte mil anotações que poderiam servir no meu trabalho, e que ainda não foram utilizadas. Várias dessas notas foram tiradas de conversas com pessoas. Adoro ouvir pessoas falarem, com a condição de que falem sobre assuntos que conheçam."
"Como lhe foi possível fazer o que fez sem estudo científico de espécie alguma?"
"Tive a oportunidade de entrar no mundo num momento em que já existiam dicionários sobre todos os assuntos possíveis. Bastava eu encontrar no dicionário o assunto sobre o qual procurava um esclarecimento, e pronto. É certo que com muitas leituras consegui inúmeros dados e, como já disse, guardo na cabeça fragmentos de informações científicas. Foi assim que um dia, num café em Paris, enquanto lia, no "Le Siècle", que um homem podia viajar oitenta dias ao redor da Terra, imediatamente imaginei que eu poderia aproveitar de uma diferença de meridiano, e fazer o meu viajante ganhar ou perder um dia em sua viagem. Tinha encontrado o desenrolar que procurava. A história foi escrita muito tempo depois. Guardo ideias na lembrança durante anos - às vezes dez ou quinze antes de lhes dar forma.
O meu objectivo foi mostrar a Terra, não somente a Terra, mas o Universo, porque, nos meus romances algumas vezes transportei os meus leitores para regiões além da Terra. Procurei ao mesmo tempo atingir um ideal de estilo. Dizem que não pode haver estilo num romance de aventuras, mas não é verdade; porém admito que é muito mais difícil escrever num bom estilo literário esse tipo de romance do que estudos de caracteres hoje tão em voga. Confesso", e então Júlio Verne ergueu ligeiramente os largos ombros, "que não sou grande admirador do chamado romance psicológico, porque não vejo o que um romance tem a ver com a psicologia e não posso dizer que admiro os ditos romancistas psicológicos. Entretanto, faço excepção a Daudet e Maupassant. Tenho a maior admiração por Maupassant. É um génio, que recebeu do céu o dom de escrever sobre tudo e que produz com tanta naturalidade e facilidade quanto a macieira que produz maçãs. Todavia, o meu autor favorito é, e sempre foi, Dickens. Não conheço além de uma centena de termos ingleses, por isso o leio traduzido. Mas, afirmo-lhe, senhor", Verne colocou a mão sobre a mesa, insistindo, "que li tudo de Dickens pelo menos dez vezes. Não posso dizer que o prefiro a Maupassant, porque não há comparação possível entre os dois. Mas gosto imensamente dele, e no meu próximo romance, "Ptit-Bonhomme", dou provas disto e do meu reconhecimento. Sou também e sempre fui grande admirador dos romances de Cooper. Há quinze deles que considero imortais."
Retrato de Charles Dickens
Depois, falando como se sonhasse, Verne acrescentou: "Dumas muitas vezes me dizia, quando eu lamentava que não era reconhecido no meu lugar na literatura francesa: "Você deveria ter sido um autor americano ou inglês. Assim, os seus livros traduzidos para o francês lhe teriam dado enorme popularidade na França e teria sido considerado pelos seus compatriotas um dos maiores mestres da ficção." Mas, sendo as coisas como são, eu não conto na literatura francesa. Há quinze anos, Dumas propôs o meu nome, para a Academia Francesa, e, como vários amigos ali tinham assento, Labiche, Sandoz e outros, parecia haver uma chance de que eu fosse eleito e o meu trabalho oficialmente reconhecido. Mas isso jamais aconteceu e hoje, quando recebo cartas da América dirigidas a "M. Jules Verne de l'Académie française", sorrio comigo mesmo. Desde o dia em que se propôs o meu nome, não menos de quarenta e duas eleições se processaram na Academia Francesa que, por assim dizer, se renovou inteiramente, porém, fui sempre ignorado."
Foi então que Verne pronunciou as palavras que coloquei no início desta entrevista, por causa de sua importância.
Para mudar de assunto, pedi ao mestre que falasse das suas viagens.
"Viajei de iate para meu prazer, mas sempre com a ideia de tomar notas para os meus livros. Foi uma preocupação constante e cada um de meus romances se beneficiou com minhas viagens. Por exemplo, em "Le billet de lotérie" encontra-se o relato de experiências pessoais e observações feitas no decorrer de uma viagem à Escócia, nas ilhas de lona e Staffa, assim como de uma viagem na Noruega em 1862, quando se subiu o canal de Estocolmo a Cristiana, passando por noventa e sete eclusas, uma viagem extraordinária de três dias e três noites num steamer, e quando se foi de caleça pela parte mais selvagem da Noruega, o Telemark, e visitou-se as quedas do Gosta, de uma altura de novecentos pés. Em "Les Indes noires" narrei a viagem pela Inglaterra e a minha visita aos lagos escoceses. "Une villeflottante" surgiu da viagem pela América no Great Eastern: fui a New York, visitei Albany e vi as quedas do Niagara e tive uma sorte formidável e a alegria de ver o Niagara todo coberto de gelo. Era 14 de Abril, e havia torrentes de água que despencavam. Pelos mordentes abertos do gelo. "Matias Sandorf" veio de um cruzeiro de Tânger a Malta num iate, e SaintMichel, baptizado como meu filho Michel, que me acompanhou, juntamente com a sua mão e o meu irmão Paul. Em 1878, com Raoul Duval, Hetzel filho e o meu irmão, viajei de iate pelo Mediterrâneo, uma viagem muito instrutiva e bastante agradável. Viajar era o prazer da minha vida e foi com muita tristeza que tive de abandonar tudo, em 1886, depois de um acidente. Você deve conhecer esta triste história, em que um de meus sobrinhos, que me adorava, veio ver-me um dia em Amiens, e que, depois de ter resmungado qualquer coisa, pegou um revólver e atirou em mim, ferindo-me a perna esquerda e me tornando enfermo pelo resto da vida. A ferida nunca cicatrizou e a bala nunca foi extraída. O menino tinha ficado perturbado e disse que agira desse modo para atrair a atenção para minha candidatura à cadeira da Academia Francesa. Ele está agora num asilo e receio que nunca fique curado. O grande desgosto que isso me causa é, sobretudo, nunca mais poder rever a América. Queria tanto ir a Chicago este ano, mas, neste estado de saúde, e com esta ferida constante, é completamente impossível. E eu amo tanto a América e os americanos! Quando escrever para a América, não deixe de dizer-lhes que, se eles gostam de mim - estou certo que sim, porque todos os anos recebo dos Estados Unidos milhares de cartas - correspondo com todo o meu coração à sua afeição. Oh! Se ao menos pudesse vê-los, seria a grande alegria da minha vida!
Se bem que nos meus romances a maior parte dos dados geográficos provêem de observações pessoais, às vezes confio nas minhas leituras, para as descrições. Foi assim no romance de que falei, "Ptit-Bonhomme", que vai sair, quando descrevo as aventuras de um rapaz na Irlanda, desde a idade de 2 até 15, quando ele fez a sua fortuna e a de seus amigos, e que é o desfecho do romance. Ele dá volta por toda a Irlanda e, como nunca estive lá, as descrições de paisagens e localidades foram inspiradas em outras obras.
No meu trabalho, estou vários anos adiante. O próximo romance, isto é, o que será publicado no próximo ano, "Les aventures mirifiques de Mattre Anfiter", está completamente pronto. É a história de um pesquisador e descobridor de tesouros, e a intriga gira em torno de um problema geométrico muito curioso. Actualmente estou preso ao romance que aparecerá em 1895, mas nada posso dizer sobre ele, porque ainda não tomou forma. Entre os dois, escrevo novelas. No próximo número de Natal do Figaro sairá um de meus contos, M. Ré-dièze et Mlle. Mi-beniol (ré sustenido e mi bemol, como você sabe, são a mesma nota no piano). Vê onde quero chegar? Ali, os meus conhecimentos musicais entraram em jogo. Nunca se perde nada do que se aprendeu.
Muitas vezes me pergunto, como você o fez, porque resido em Amiens, eu que sou inteiramente parisiense por instinto. Pois bem, é porque, como já lhe disse, tenho sangue bretão e amo a paz e a tranquilidade, e só poderia ser mais feliz num claustro. Uma vida tranquila de estudo e de trabalho é um prazer.
Vim a Amiens pela primeira vez em 1857 ou 588, quando encontrei a jovem que se tornaria minha esposa e que, na época, se chamava Madame de Vianne e era viúva, com duas filhas. Depois, os laços familiares e a tranquilidade do lugar me prenderam. E foi muito bom, pois, como Hetzel me disse outro dia, se tivesse ficado em Paris, eu teria escrito uns dez romances a menos. Amo demais a vida que levo aqui. Já contei como trabalho pela manhã e leio à tarde. Faço exercício o mais possível. É o segredo da minha saúde e da minha vitalidade. Sempre fui apaixonado pelo teatro; aliás, todas as vezes que uma peça é encenada aqui, pode estar certo de encontrar Madame Júlio Verne e o marido no seu camarote. Nestes dias jantamos no Hotel Continental9 , para sairmos um pouco e darmos folga aos empregados.
O nosso filho único, Michel, mora em Paris, casado e com filhos. É um competente escritor de assuntos científicos. Só tenho um animal; o seu retrato aparece na foto de casa; é o meu velho cão, Follet."
Depois, coloquei uma questão que, embora indiscreta, me parecia necessária. Ouvira dizer que os rendimentos que ele auferia de seus maravilhosos livros eram inferiores ao de um jornalista comum. E de fonte bastante autorizada soubera que Júlio Verne jamais ganhou, em média, mais de cinco mil dólares por ano. Ao que ele responde:
"Preferiria nada dizer sobre isto. É verdade que os meus primeiros livros, inclusive aqueles que tiveram o maior sucesso, foram vendidos pelo décimo de seu valor; mas, após 1875, isto é, após "Michel Strogoff", as minhas normas mudaram e me dão uma participação honesta nos benefícios dos meus romances. Não tenho do que me queixar. Tanto melhor se o meu editor lucrou igualmente. Certamente eu poderia lamentar não ter feito melhores contratos para os meus livros. Assim, "Le Tour du Monde", sozinho, na França, conseguiu levantar dez milhões de francos, é "Michel Strogoff", sete milhões, dos quais recebi muito menos do que me cabia. Eu, porém, não sou e jamais fui homem para ganhar dinheiro. Sou homem de letras e artista, vivendo à procura de um ideal, lançando-me selvagemente a uma ideia, e ardendo de entusiasmo pelo meu trabalho; e quando está terminado ponho de lado, esquecendo tudo a tal ponto que muitas vezes sento-me em minha mesa, tomo um romance de Júlio Verne e o leio com prazer. E eu teria preferido um milhão de vezes um pouco de justiça por parte de meus compatriotas do que os milhões de dólares que os livros poderiam ter-me rendido. É isto que lamento e sempre lamentarei."
Lancei uma olhadela para a roseta vermelha de oficial da Legião de Honra presa na lapela da jaqueta azul e confortável do mestre.
"Sim", disse ele, "é um pouco de reconhecimento"; depois, com um sorriso: "Fui o último a ser condecorado sob o Império. Duas horas depois da assinatura do meu decreto, o Império havia deixado de existir. A minha promoção ao grau de oficial foi assinada no mês de Julho do derradeiro ano. Mas, não aspiro mais às condecorações daqui por diante. O que eu queria é que se notasse o que fiz ou tentei fazer, e que não se negligenciasse o artista no contista. Eu sou artista", repetiu Júlio Verne, inteiriçando-se e batendo vigorosamente o pé no tapete.
"Eu sou artista", diz Júlio Verne. Na América, não importa quantos leitores haja, isto ecoará.
ANEXO
1 Esta entrevista apareceu sob o título de "Jules Verne at home: His own account of his life and work", in McClures Magazine, vol. 11, No. 2, Janeiro de 1894.
2 J. Verne contabiliza seus escritos em volume; é obrigado por contrato com Hetzel, a publicar dois volumes por ano. Conforme sua extensão, os romances representam um, dois ou três volumes. Por exemplo, "Cinq semaines en ballon" vale por um romance, "Vingt mille lieues sous les mers", por dois, e "Les enfants du capitaine Grant", por três. Os volumes 76º e 77º correspondem às duas partes de P'tit Bonhomme, que surge algum tempo depois desta entrevista, em Novembro de 1893.
3 Trata-se do relatório sobre o aproveitamento do Teatro municipal apresentado ao Conselho Municipal de Amiens por ocasião da sessão de 17 de Janeiro de 1894.
4 A mãe de Júlio Verne morreu em 1887.
5 "Un voyage en ballon", Musée des Familles, agosto de 1851.
6 "Cinq semaines en ballon" foi escrito em 1862 e Júlio Verne tinha trinta e quatro anos (e não vinte e seis). O romance foi publicado por Hetzel em 1863.
7 O relato dessa subida foi publicado por Verne em 1873 sob o título "Vingt-quatre minutes en ballon".
8 Erro: foi em 1856, mas os Verne casaram-se em 1857.
9 O Hotel Continental, hoje desaparecido, ficava na rue des Trois-Cailloux, No. 62, em frente ao Teatro.
Traduzido do inglês por Sylvie Malbraneq e do francês por A.G.R.D., publicado no Magazine Littéraire, Nº 281, Outubro de 1990.
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