sexta-feira, 13 de maio de 2011

O "Universo Verniano"

Júlio Verne escreveu, como se sabe, mais de uma centena de obras, entre romances geográficos (as famosas Viagens Extraordinárias Através de Mundos Conhecidos e Desconhecidos), contos, peças de teatro, estudos históricos, biografias de grandes descobridores e até poesias.

Alguns livros foram merecedores de continuações, escritas às vezes muitos anos depois, como é o caso de O Senhor do Mundo, de 1904, que é a continuação de Robur, o Conquistador, escrito em 1886. Da Terra à Lua (1865) seguiu-se de Ao redor da Lua, publicado quatro anos depois. E há também o famoso caso do livro A Esfinge dos Gelos, escrito como uma sequela para a obra do autor norte-americano Edgar Allan Poe, O Relato de Arthur Gordon Pym.

Mas em outros momentos, muitas obras se apresentam, de alguma forma, mencionadas, homenageadas, lembradas ou simplesmente citadas em outras, pelo próprio autor. Ele fazia, assim, uma certa ligação, uma conexão entre essas histórias, compondo um “Universo Verniano”, onde personagens, situações, fatos e acontecimentos repercutiam além das páginas da história que ele um dia havia narrado.

Talvez a mais conhecida dessas ligações seja, sem dúvida, a que une os três livros Os Filhos do Capitão Grant, Vinte Mil Léguas Submarinas e A Ilha Misteriosa, envolvendo os personagens Nemo e Ayrton.

Mas há outras.


O Clube do Canhão

O Gun Club, ou Clube de Canhão, sociedade norte-americana sediada em Baltimore e dedicada ao estudo científico das armas de fogo e da balística, também é “personagem” de três obras de Júlio Verne: além dos já citados Da Terra à Lua e Ao redor da Lua, ela e seus principais membros reaparecem, muitos anos depois, e de uma forma extremamente bem-humorada, em Fora dos Eixos, de 1889 - um dos mais engraçados livros do autor francês.

Em outra “ideia fantástica”, o presidente Impey Barbicane, o capitão Nicholl, J.T. Maston & cia. anunciam a construção de outro super-canhão, a ser instalado nas regiões centrais da África, junto à cordilheira do Kilimanjaro e calculado para dar um tiro tão estrondoso, tão poderoso, que o recuo produzido pelo disparo faria a Terra sair de seu eixo natural! O objetivo seria o de explorar reservas de carvão (o petróleo da época) no que até então era o Pólo Norte do planeta, após o derretimento da calota polar.

Assim, as terras polares, antes sem valor econômico relevante, poderiam ser compradas a preço baixo e, depois do “ajuste” no pólo magnético, exploradas com lucro fabuloso. De nada adiantam os protestos daqueles que antevêem a catástrofe planetária que viria com tal “ajuste”... coisas de norte-americanos, vocês sabem...

No mesmo livro Verne faz referência a duas outras obras suas: A Escola dos Robinsons e Hector Servadac. A primeira é referida no 3º capítulo, quando o Pólo Norte está prestes a ser leiloado:
“ Existia, além disso, um precedente. Parte do nosso planeta havia sido já adjudicada, em uma das salas das «Auctions», em hasta pública e por intermédio de um corretor de leilões. Precisamente na América. De facto, alguns anos antes, em S. Francisco da Califórnia, uma ilha do oceano Pacífico, a ilha Spencer [da Escola dos Robinsons], fora vendida ao milionário William W. Kolderup, que venceu por quinhentos mil dólares o seu concorrente J. R. Taskinar, de Stockton [personagens do livro]. Esta ilha Spencer foi paga por quatro milhões de dólares. Em verdade era uma ilha habitável, situada a alguns graus somente da costa da Califórnia, com florestas, cursos de água, solo produtivo e sólido, campos e prados susceptíveis de cultura, e não uma região indecisa, talvez um mar coberto de gelos eternos e defendido por inacessíveis montanhas de gelo, que muito provavelmente ninguém poderia jamais ocupar.”
Hector Servadac é citado no 18º capítulo, quando o canhão está prestes a ser disparado:
“Quem sabe? Talvez o presidente Barbicane e o capitão Nicholl lamentassem não poder tomar lugar no projéctil! No primeiro segundo teriam percorrido dois mil e oitocentos quilómetros! Depois de haver penetrado os segredos do mundo selenita, teriam desvendado os mistérios do mundo solar, em condições bem mais interessantes do que o francês Hector Servadac, levado pelo cometa Galia!”


Robur e os Milhões da Begum

Robur, o Conquistador, foi a transposição, para o ar, do drama dos mares imaginado por Verne em Vinte Mil Léguas Submarinas: um personagem misterioso, forte e com poder suficiente em suas mãos – através de um engenho mecânico – para dominar um dos elementos da natureza.

Robur, assim como Nemo, não tem nome, pátria ou família. Também como ele, é um cientista e um engenheiro cuja genialidade o coloca acima dos outros mortais. E de forma análoga, também aparece em duas obras vernianas, retornando “dos mortos” e assumindo a condição de lenda.

Mas o livro tem, ainda, uma outra citação, ainda mais interessante, logo nas primeiras páginas. Intrigados com o surgimento de estranhas luzes e sons de música vindos dos céus, testemunhados em diversas cidades ao redor do mundo, jornais e periódicos de todo o planeta tentavam explicar os fenômenos. Um desses jornais, mais precisamente o New York Herald recebeu uma carta de um leitor anônimo que lembrava:
Ninguém deve ter se esquecido da rivalidade que, há alguns anos, surgiu entre os herdeiros da Begum de Nagginahra, o doutor francês Sarrasin em Cidade de França e seu colega alemão, o doutor Schultze, na sua cidade Campo do Aço, ambas situadas em Oregon, EUA. Tampouco se terá esquecido que, com a finalidade de destruir a Cidade de França, Schultze lançou tremendo projétil que deveria cair sobre a cidade francesa e aniquila-la de um só golpe...

Verne, assim, se auto-refere novamente, citando o argumento de Os 500 Milhões da Begum, escrito em 1879, traçando um paralelo entre as duas obras e surpreendendo seus leitores.


Claudius Bombarnac e Miguel Strogoff

Em A Carteira do Repórter ou Claudius Bombarnac, obra de 1892, há uma rápida e intrigante citação.

Dois personagens conversam sobre peças de teatro e um deles comenta ter assistido a Miguel Strogoff. O interessante aqui é que Verne realmente transpôs a saga do Correio do Czar para os palcos, assim como fez com A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, sem dúvida seu maior sucesso teatral.

Mas aí Verne está citando Strogoff como uma peça, um personagem fictício e não como uma “pessoa viva” de seu “universo” particular. Só faltou ele mencionar o autor da peça...

Além disso Verne, mesmo não referindo à obra, faz troça dos viajantes que circundam o globo no menor tempo possível, numa clara referência à viagem de Phíleas Fogg em A Volta ao Mundo em 80 Dias.


Explorando o Universo

Em A Esfinge dos Gelos, homenagem de Verne à obra de Edgar Allan Poe, O Relato de A Narrativa de Arthur Gordon Pym, como dissemos atrás, cita Vinte Mil Léguas Submarinas  no 10º capítulo do 2º volume, aquando da passagem dos personagens pelo Pólo Sul:
“O dia correu todo nestas condições. Nem uma só vez se abriu a cortina ante nossos olhos, e se o icebergue, que andara umas quarenta milhas desde a véspera, havia passado no extremo do eixo da Terra, nunca o saberíamos. [Nota do autor: Vinte e oito anos mais tarde, o que o Sr. Jeorling nem sequer podia prever, houve quem o visse, e houve quem chegasse a este ponto do Globo, a 21 de Março de 1868. (…) E, precisamente no ponto em que o horizonte, do lado norte, cortava em duas partes iguais o disco solar, tomava ele posse do dito continente em seu próprio nome e desfraldava a bandeira de filete com um N bordado a ouro. Ao largo flutuava um barco submarino, que se chamava «Nautilus» e cujo comandante era o Capitão Nemo.]”

Em O País das Peles, escrito no ano de 1873, há uma referência à personagem Capitão Hatteras, livro de 1866, no 3º capítulo da 2ª parte:
“Em qualquer hipótese lembra-me que uma dessas raposas, já velha, foi apanhada pelo capitão Hatteras durante a sua viagem de exploração. Ainda trazia ao pescoço uma coleira muito gasta no meio dos fartos pêlos brancos.”

Em O Vulcão de Ouro, logo no primeiro capítulo, há uma menção à saga narrada no romance Família sem nome:
“A que propósito queria o notário ver o Sr. Summy Skim? Este conhecia-o, como toda a gente em Montreal. Era uma excelente pessoa, um conselheiro certo e prudente. Nascido no Canadá, dirigia o melhor cartório da cidade, o mesmo que, sessenta anos antes, tinha como responsável o famoso Sr. Nick, cujo verdadeiro nome era Nicolas Sagamore, de origens humildes, tão patrioticamente envolvido no terrível caso Morgaz, cuja repercussão foi considerável por volta de 1837.” [personagens de Família sem nome.]

Em A Casa a Vapor há referências a diversos temas presentes em trabalhos anteriores do autor, num verdadeiro compêndio do que chamamos Universo Verniano:
“- Isso vai ser feito, disse o capitão Hud, assim como um dia a Viagem ao Pólo Sul e Pólo Norte!
- Claro que sim!
- A viagem até as profundezas do oceano!
- Sem dúvida!
- A viagem ao centro da terra!
- Bravo, Hod!
- Como tudo far-se-á!
- Mesmo uma viagem a cada um dos planetas do mundo solar! - respondeu o capitão Hod, que nada não parava mais.
- Não, capitão - respondeu. O homem, simples habitante da Terra, não saberia cruzar os limites”.

No capítulo 11 de A Caça ao Meteoro, Verne relembra elementos de duas obras suas: Da Terra à Lua e Fora dos Eixos. Porém, nesse caso, ele as revela como sendo pura ficção, fazendo uma inesperada e muito bem-humorada referência à sua própria pessoa:
“Porque não se construía um canhão tão potente como aquele que, havia alguns anos, enviara uma bala para a Lua, ou àquele que, mais tarde, tinha tentado, através de um repuxo formidável, modificar a inclinação do eixo terrestre?... Sim, mas as duas experiências referidas, ninguém o ignorava, não eram senão fantasia surgida da pena de um escritor francês, talvez com demasiada imaginação.”

Até no mais famoso dos livros de Verne, Vinte Mil Léguas Submarinas, há quem veja referências a Viagem ao Centro da Terra e Hector Servadac numa discussão sobre monstros marinhos, onde o personagem Ned Land comenta ao professor Aronnax:
“Que o vulgo acredite em meteoros deslumbrantes que cruzam o espaço ou na existência de dinossauros pré-históricos que vivem no interior da terra, ainda se aceita. Mas nem o astrônomo nem o geólogo admitem tais quimeras. Com o baleeiro acontece o mesmo.”


Para além do Universo

Esses são apenas alguns exemplos de conexão entre as obras vernianas. No entanto, acreditamos na existência de ainda mais citações, lembranças, menções e auto-referências em diversos momentos da imensa produção literária de Júlio Verne.

Por isso, e agradecendo aos vernianos Frederico Jácome, Garmt de Vries e Rick Walter pelas valiosas e enriquecedoras contribuições a esse artigo, deixo-o em aberto, para que você também tenha a oportunidade de escrevê-lo com suas próprias anotações.

Assim, a proposta é a seguinte: envie-nos seu comentário ou sua descoberta relativa ao infinito Universo Verniano e participe você também desse estudo.
Um abraço a todos.

3 comentários:

Luis disse...

Excelente texto. Deixo os meus parabéns ao verniano Carlos Patricio.

Para mim foi um reviver de algumas das obras que já li de JV, bem como das referidas menções dessas mesmas obras noutras mais recentes, que pude com agrado recordar.

Esta é uma razão mais que suficiente para ler um escritor como Verne seguindo a ordem de lançamento das suas aventuras caso se tenha acesso a elas, pois como ficou demonstrado há detalhes que fazem "mais" sentido nas obras mais recentes se as anteriores tiverem sido lidas.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Muito bem escrito o texto, adorei. Julio era um gênio.
Abraços!

Anónimo disse...

Amo muito as histórias de Verne, sou uma verninana. E parabéns pelo texto bem escrito.