segunda-feira, 9 de maio de 2011

Crítica 'A Caça ao Meteoro (1901)'

A Caça ao Meteoro é um dos chamados “livros póstumos” de Jules Verne. Isto lhe confere duas características específicas: a primeira, óbvia, porque, apesar de escrito em 1901, foi publicado apenas após sua morte no ano de 1905. A segunda é que, assim como outras obras póstumas (O Vulcão de Ouro, O Segredo de Wilhelm Storitz, Um Padre em 1839 e O Farol no Fim do Mundo são exemplos), seu manuscrito foi, a pedido do editor Jules Hetzel Filho, inteiramente reescrito pelo filho de Verne, Michel, com a justificativa de “adequá-lo aos novos tempos”.

O que por si só já seria uma blasfêmia revelou-se um completo desastre: Michel não possuía um milésimo da capacidade inventiva, da habilidade narrativa ou do talento literário do pai. Assim, os livros acima citados foram recebidos pelo público e pela crítica da época com relativa frieza. Descaracterizados, sem atrativos e mal escritos, caíram no esquecimento rapidamente - e durante décadas a fio.

Graças a esforços de estudiosos vernianos como Piero Gondolo de la Riva, os manuscritos originais de Jules Verne foram encontrados e suas ideias, personagens e situações, recuperadas. Mas sem dúvida, o maior benefício para essas obras foi o retorno do inconfundível estilo de seu verdadeiro autor, cheio de elegância, inteligência e humor, muitas vezes irônico e sarcástico. E é justamente esse o maior atributo de A Caça ao Meteoro: não se trata de uma aventura fantástica, como o nome poderia sugerir, nem de uma viagem cheia de detalhes geográficos pitorescos, mas de uma deliciosa e bem-humorada crítica à sociedade de então – especialmente a norte-americana – suas ambições, valores, manias e vaidades.

A observação da proximidade de um grande cometa, realizada simultaneamente por dois astrônomos da cidade de Whaston, no estado da Virginia, os coloca numa disputa pela primazia da descoberta, que em nada interessa ao sobrinho de um e à filha do outro, apaixonados que estão. A súbita rivalidade surgida entre os dois rabugentos cientistas afasta as duas famílias e ameaça os planos do romântico casal, numa divertida paródia de Romeu e Julieta.

Quando se desconfia que o bólido celeste possa vir a ser uma enorme rocha de ouro puro prestes a cair na Terra, Verne mostra como os representantes dos países no trajeto dos possíveis locais de queda do cometa digladiam-se enquanto esperam ser atingidos pelo mesmo, num “golpe de sorte” onde ninguém parece se preocupar muito com as nefastas consequências que tamanho impacto poderá acarretar em seus territórios e junto à sua população.

Verne aproveita também para expor a efemeridade das relações e das instituições naqueles tempos “modernos”, mostrando, por exemplo, as idas e vindas de um casal que contrai o matrimônio, separa-se e se casa novamente num pequeníssimo intervalo de tempo e sem maiores traumas para ambas as partes. Os casamentos e divórcios à americana espantam o escritor, que faz um de seus personagens exclamar: “Eu admiro verdadeiramente a facilidade que há em casar na América... quase tanto como a facilidade em se divorciar!

A edição portuguesa de 1999, a cargo da Editorial Notícias, traz ainda um prefácio do então presidente da Société Jules Verne, Olivier Dumas. Ao defender a publicação do relato assim como Verne o imaginou apresentar aos leitores do século XX, Dumas compara as duas versões, a de Verne e as alterações promovidas por Michel, demonstrando o quanto o trabalho original havia perdido de seu brilhantismo, comicidade, leveza e genialidade. E conclui: “A versão original, a única autêntica, desembaraçada das alterações de Michel – que não só a tornam mais pesada, mas também a transformam - reencontra suas cores, a sua fantasia, o seu encanto, a sua filosofia irónica, a sua ligeireza e a sua fluidez. Teria essa agradável caça no campo das estrelas necessidade de ser reescrita? Não!

Eu concordo.

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