sábado, 6 de maio de 2023

Jules Verne e Eu ou a História de um Declínio - por João Bénard da Costa


João Bénard da Costa (1935-2009) desempenhou várias actividades ao longo da sua vida, mas, entre nós, ficou conhecido, sobretudo, pela sua paixão pelo cinema. Como crítico e ensaísta da sétima arte (vale a pena ler, entre outras, a monografia que dedicou ao realizador americano Nicholas Ray), como actor (sob o pseudónimo de Duarte de Almeida participou em vários filmes de Manoel de Oliveira) e como director da Cinemateca (entre 1991 e 2009).

Bénard da Costa, tal como muita gente da sua geração, conviveu intensamente com os livros de Jules Verne durante a sua adolescência, à semelhança das gerações anteriores à sua. Durante a primeira metade do século vinte, Verne foi um autor quase incontornável na construção de "autoestradas" onde se declinava prodigiosamente o verbo sonhar e em que a imaginação deslocava-se livremente sem limites de velocidade.

Reproduz-se a seguir o testemunho de Bénard da Costa sobre a sua relação com Jules Verne, extraído de um artigo que escreveu para o jornal Público, a 1 de Abril de 2005. De acordo com ele, as gerações posteriores à sua, sobretudo a partir de 1960, começaram a deixar de adoptar Verne como o seu companheiro preferido de viagens imaginárias e a procurar "autoestradas" para o sonho noutras paragens.

Há uma frase do artigo de Bénard da Costa que se deve reter: «Verne durou de 1860 a 1960, pelo menos como "leitura global”». Existe algum fundo de verdade nesta afirmação. O arco temporal de 1960 em diante confirma, de facto, um declínio no interesse que Verne suscitava. Por diversos motivos: a nível internacional, em pleno auge da Guerra Fria, vivia-se a era nuclear e as "antecipações" Vernianas (ou muitas delas) já tinham sido concretizadas, mas também porque a definitiva implantação da televisão como meio preferido de entretenimento popular começou a subtrair potenciais leitores para a sua esfera de influência e a propiciar outras formas (mais fáceis e mais ligeiras) de formar a faculdade da imaginação.

O caso português, em parte, também acompanhou esta tendência. Comprova-se isso em números: as edições Vernianas lançadas pela Bertrand na segunda metade da década de 1950 tinham, quase todas sem excepção, tiragens de 10000 exemplares.


Contudo, em meados dos anos sessenta, a editora viu-se confrontada com um declínio acentuado de vendas. Por desinteresse crescente por ou saturação do público leitor, a marca Verne já não era tão apelativa comercialmente e as suas obras não escoavam tão facilmente como em décadas anteriores. 

Em finais de 1966, a Bertrand reformulou por completo a estratégia editorial e lançou a "Júlio Verne - Nova Colecção Ilustrada": capas originais para cada uma das obras e cada título continha entre oito a dez ilustrações em vez das duas que acompanhavam os famosos livros de capa vermelha e preta da Grande Edição Popular que eram dados ao prelo da mesma forma desde a década de 1920 (na verdade vinham desde 1886, mas até então com capas de cores diferentes consoante a obra; o vermelho e preto nas capas ganharam foros de exclusividade entre 1926 e 1955).


As tiragens foram reduzidas a metade: 5000 exemplares por cada obra. Contudo, o número de reimpressões que grande parte das obras teve durante a década de 1970 e início da de 1980 (a Bertrand daria por terminada esta colecção em 1982) sugere que Jules Verne tinha ainda uma legião de leitores portugueses bastante assinalável (não existe informação sobre as tiragens das Publicações Europa-América ou dos Amigos do Livro da década de 1980 mas não devem ter superado estes números; só a edição de A volta ao mundo em 80 dias dos Editores Associados, em 1973, atingiu números verdadeiramente extraordinários: 30000 exemplares).

Para se ter uma noção dos números médios de edição no mercado nacional actual: um livro com uma tiragem inicial de 1000 exemplares, a não ser que seja já um nome bem implantado no mercado ou um tema/figura que dê garantias de sucesso comercial imediato, é um empreendimento bastante arriscado. À luz disto, nos dias de hoje, uma tiragem inicial de 5000 exemplares é uma raridade só partilhada por alguns "eleitos".

Considerações à parte, aqui fica o texto João Bénard da Costa (que pode ser lido na íntegra em https://e-cultura.blogs.sapo.pt/59799.html.).

«Tanta conversa para quê? Para observar que, além do autor de Les Misérables (e, neste caso, era preferível escrever Os Miseráveis) Júlio Verne é o único escritor do século XIX a que raríssimos portugueses chamam Jules Verne. A imensa popularidade tem que ver com isso, no caso de Hugo como no caso de Verne? É bem possível. Eles foram dos pouquíssimos que foram quase integralmente traduzidos no seu tempo e lidos por portugueses que não sabiam palavra de francês, coisa que no século XIX, e até cerca de 1960, era sinal de incultura grassa. A "sociologia cultural", embora não explique Miguel Ângelo ou Rafael, pode explicar o Júlio Verne, que se pegou aos espíritos cultivados por contágio dos baixíssimos ou dos pré-adolescentes que em tempos idos o liam.

Júlio Verne, assim o conheci eu também, entre os meus 8 e os meus 12 anos, mais coisa menos coisa. Em casa dos meus avós, como em casa dos meus pais, havia prateleiras de estantes cheias, com as edições que começaram por ser de David Corazzi, subnominadas "imprensa horas românticas", e passaram depois para a Bertrand (Aillaud e Bertrand), mantendo-se idênticos o formato, a encadernação, o encarnado (às vezes o verde) e as gravuras da capa: uma bananeira com uma serpente enroscada no caule; um leão; um navio naufragado com um vago vulcão ao fundo; e um balão pelos ares. Para além do título da obra, lia-se em maiúsculas itálicas, a quase toda a altura, a expressão Viagens Maravilhosas.

Por uma dessas edições (de 1888 - mas já era a terceira) conto eu trinta e dois volumes já editados nesse ano em português, sendo que vários deles eram duplos ou triplos (A Aventura do Capitão Hatteras, Os Filhos do Capitão Grant, Vinte Mil Léguas Submarinas, A Ilha Mysteriosa, Miguel Strogoff, O Paiz dos Pelles, Heitor Servadac, Um Heroe de Quinze Annos, A Casa a Vapor, Keraban o Cabeçudo, Mathias Sandorf, Norte Contra Sul) e um (As Grandes Viagens e os Grandes Viajantes) era quíntuplo, o que, bem feitas as contas, perfaz quarenta e oito livros, que haviam de chegar aos setenta e dois, à data da morte do escritor.

A grafia usada era o esplêndido português anterior ao malfadado acordo de 1911, em que se escrevia A Esphinge dos Gelos e Luctas de Marinheiro, tanto na Rua Garrett em Lisboa como na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. Esses livros, esse encarnado, essa ortographia, essas figuras da capa, mergulhavam-me em tal êxtase, que me consolava bem de não me deixarem tocar nas luxuosas edições da Hetzel, com gravuras de Neuville, Férat, Laplante ou Doré, que havia em casa do meu Avô Bénard, no original. Numa delas, escreveu o meu Avô a lápis: "Donné par mon père le 27 Juin 1880". 

Era o dia dos anos dele, 11 no caso em questão, que é o de Vingt Mille Lieues Sous Les Mers, que tivera primeira edição em 1870. Só 71 anos depois, a 1 de Maio de 1951, passaram tais livros à minha posse, oferecidos pela minha Avó. O meu Avô leu Verne em 1880, como o meu Pai o leu em 1907 e eu o li em 1945. Três gerações educadas a Verne, mas já não juro pela quarta, pois que, apesar dos meus esforços, em 1970 ou durante essa década, os meus filhos já não devem ter terminado nenhum dos romances dele. Verne durou de 1860 a 1960, pelo menos como "leitura global”. Raros serão hoje os maiores de 50 anos que entraram na adolescência guiados pelos filhos do Capitão Grant ou reencontraram o Capitão Nemo na ilha misteriosa. "Chamaste-me Capitão Nemo?" A mim chamou-me (e de que maneira!) naquele escritório da Rua do Jardim do Tabaco, que ficava logo à direita da porta da entrada e onde uma escura livreira de mogno guardava as viagens maravilhosas que me levaram aos pólos e ao equador, à lua e ao fundo dos mares, à estrela do sul e ao centro da terra.

Mas a minha introdução a Verne não foi escrita, foi oral. Tinha eu 9 anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Uma das netas do poeta, que era minha professora - Maria da Luz de Deus Ramos que, depois de casada, já fora desse tempo, se chamou Maria da Luz Ponces de Carvalho, a Luzinha como então todos lhe chamávamos - ocupava parte da aula da tarde a ler-nos Verne. O primeiro livro que assim nos leu foi As Índias Negras, que se situava nas hulheiras de Aberfoyle, na Escócia de outras eras.



"Pede-se ao engenheiro Jaime Starr o obséquio de se dirigir amanhã às hulheiras de Aberfoyle (...) onde lhe será feita uma comunicação da mais alta importância." Assim começava esse livro. A hulha havia-se esgotado nas minas que foram abandonadas, mas estranhos mistérios ocorriam nas profundezas dela. Após muitas peripécias - e para muito resumir - descobria-se que o antigo capitão da mina ("Overman", chamou-lhe o tradutor), um velho de nome Silfax, que todos julgavam morto, se refugiava nas galerias dela, acompanhado por uma neta e por uma estranha ave, um harfang, tão mais insólito quanto nunca consegui perceber de que espécie de pássaro se tratava. O velho ensandecido procurava uma vingança contra quem lhe roubara o último filão das velhas hulheiras e também o amor da neta. O plano dele era libertar grisú, um gás explosivo, e fazer ir a mina abaixo, com todos os que o haviam roubado. Terrível era a aparição final do velho, no meio de um lago subterrâneo, "de olhar sinistro, barbas alvíssimas, caindo sobre o peito, roupas talares e a cabeça coberta por um capuz". Tinha na mão uma lâmpada de Davy e com ela queria fazer explodir o gás, o grisú. "Oh, grisú, oh grisú... Soou a hora da minha vingança!" No último minuto, dava-se a salvação e a morte de Silfax. Mas, até chegar aí, foram tardes e tardes em que eu nada mais esperava do que saber que mistério escondia a mina e quem era o fantasma que a habitava. O suspense foi demasiado. Precipitei-me para o livro e, nesse mesmo dia, começou a minha compulsiva paixão por Verne, que durou três anos e trinta livros. Começaram também os meus pesadelos com Verne, revendo o velho e o harfang de "penas brancas mosqueadas de pintas negras". Os pesadelos ainda os consegui transmitir. Em carnavais da Serra da Estrela, em casa da Zézinha e do António Alçada, quando a neve caía lá fora, antes de deitar os meus filhos mais velhos (7 e 6 anos à época) eu contei-lhes resumidamente esse extraordinário romance, detendo-me, como a Luzinha fizera comigo, na descrição das tenebrosas galerias da mina, no pássaro sinistro e na aparição do velho com o seu grito de vingança. Imitava o gesto de "horrível imprecação" que Silfax soltou ao ver frustrados os seus intentos. Grito que foi o último que proferiu, pois se precipitou nas águas do lago que não quiseram restituir à sua presa.

As crianças ouviam-me aterradas e, ainda hoje, a minha filha Ana estremece a evocar os pesadelos infantis, provocados pelo grisú, pelo harfang e pelo velho Silfax com a sua barquinha e o seu "riso cavernoso", enquanto se espalhava o cheiro do "hidrogénio protocarbonado". Imaginem que eu lhe tinha contado a história dos canibais da Galera Chancellor! Não conhecem? Esperem até à próxima sexta-feira. Já não têm 7 anos.»

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