sábado, 29 de outubro de 2022

Maio de 1884, neste Vale de Andorra Júnior à beira-mar plantado: irónica crónica de um encontro entre Rafael Bordalo Pinheiro e Jules Verne em Lisboa 3

Acto III – E se um desconhecido lhe oferecer artesanato das Caldas ou aquela noite no Braganza Hotel

A 22 de Maio de 1884, Lisboa vivia dias relativamente tranquilos, no interstício entre a plena sagração da primavera e os planos das primeiras idas a banhos nas praias à beira-Tejo com a chegada do verão.

Para além de um incêndio ocorrido no dia anterior no quartel de Infantaria 5 que já se encontrava em fase de rescaldo, a notícia mais importante desse dia dizia respeito à Sociedade promotora do apuramento de raças cavallares. Através de um anúncio publicado na primeira página do Diário Ilustrado, a dita Sociedade alertava os seus associados que encontravam-se abertas as inscrições de humanos e equídeos (e eventualmente outras criaturas com equiparação a cavalgadura devidamente certificada) para a corrida e respectiva exposição hípica que iriam ter lugar entre 29 de Maio e 1 de Junho, no hipódromo de Belém.

Foi também nesse dia que Jules Verne aportou à capital de Vale de Andorra Júnior pela segunda vez. O calendário marcava o dia de quinta-feira. Embora distante do modernismo ostentado por outras metrópoles europeias, Lisboa caminhava a passos largos para se aproximar delas o mais rapidamente possível e apresentava até alguns inéditos prodígios tecnológicos como, por exemplo, o SAM - Sistema de Arrefecimento Municipal que contemplava tanto a paisagem física como a paisagem humana da cidade nos dias de maior canícula.

Modelo de funcionamento do SAM. Apesar de Verne ter chegado no dia de calor oficial não há qualquer referência a este inovador dispositivo nos seus diários de viagem (Bordalo Pinheiro, 1881).

A frenética agenda da segunda deslocação de Verne à cidade lisboeta teve como ponto alto a tarde e a noite do dia 23 de Maio. O local? O prestigiado Braganza Hotel. Este começou por chamar-se singelamente Hospedaria Bragança até se aperceber que, para poder tornar-se o mais belo hotel da época na capital de Vale de Andorra Júnior, teria que mudar de designação comercial. A Hospedaria recebeu uma pensão de reforma, na fachada passou a figurar Hotel e Bragança passou a soletrar-se com zê.

Foi desta forma que o Braganza Hotel, nos últimos anos do século dezanove, conseguiu contar entre os seus hóspedes nomes como os da rainha da Suécia, o sultão de Zanzibar, Said-Bargash, o rei Kalakawa do Havai (Agosto de 1881), a diva do teatro francês, Sarah Bernhardt (Abril de 1882), os embaixadores do Japão, entre várias outras personalidades internacionais. Embora podendo fazer parte deste restrito lote de personalidades, Jules Verne declinou inscrever o seu nome como hóspede na história do hotel, preferindo antes pernoitar no Hotel Iate (isto é, no seu próprio barco), localizado no matinalmente sempre buliçoso porto de Lisboa (Rego, 2022: 5).

O Braganza Hotel visto do Largo do Corpo Santo (C.P. Symonds, 1856).

Apesar da sua nítida antipatia por leitos andorranos juniores, a convite de David Corazzi, Verne gentilmente acedeu a um encontro no Braganza Hotel com algumas personalidades das letras portuguesas como Manuel Pinheiro Chagas, Salomão Bensabat Saragga, Ramalho Ortigão e, claro está, Rafael Bordalo Pinheiro.

Os dois primeiros foram tradutores de obras de Verne. O terceiro informou o escritor francês que uma obra deste tinha inspirado a Eça a descrição de Pequim em O Mandarim (Rego, 2022: 5). Bordalo Pinheiro, que não foi tradutor de Verne nem escreveu sobre Pequim, decidiu homenagear o escritor, oferecendo-lhe um pasmoso exemplar do artesanato produzido na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha (na qual Bordalo chefiava o sector artístico): uma peça de loiça onde figuravam um lagarto e outros animais (Jácome).

Além de, certamente, estar a tentar alargar a produção da Fábrica de Faianças a novos mercados internacionais (e, em 1884, o mercado francês, isto é, Paris era a capital mundial da arte), a oferta de Bordalo a Verne teve um outro intuito que até o próprio artista, muito provavelmente, nunca terá realizado completamente.

A explicação para este acto inconsciente poderá soar algo complexa, mas é bastante simples e lógica. Tinham-se passado doze anos desde a publicação dos Apontamentos. Embora Bordalo continuasse a desvelar a sua diatribe ditirâmbica de ironia em I maior através de jornais como o António Maria, a sua posição de juventude face a certos temas como, por exemplo, a duração de viagens à volta do mundo amadureceu com o decorrer dos anos.

A oferta de Bordalo a Verne não pretendeu ser apenas uma homenagem do artista ao escritor. Foi, também, o reconhecimento da maior autoridade deste último naquela matéria, na qual Bordalo assumia agora uma posição muito mais conservadora. Comprovaremos isso mediante a reacção que o caricaturista exprimiu em relação à segunda estância de Verne em Vale de Andorra Júnior.

O resto do serão de 23 de Maio de 1884 foi bastante agradável. O encontro no Braganza Hotel foi seguido de um jantar, em que Verne foi presenteado à sobremesa com a edição portuguesa das suas obras (Compère, 1973: 414), e de uma soirée teatral. Às seis da manhã de sábado, 24 de Maio, com um amanhecer nublado e com o Tejo em intensa actividade marítima, Verne deixou a capital no seu iate/hotel/restaurante à velocidade de 9,5 nós, rumo a Gibraltar (Rego, 2022: 6).

Embora sem provocar o alvoroço e a comoção que, nessa época, eram apenas reservados aos membros mais importantes das grandes casas reais europeias que rendiam a Lisboa a honra da sua presença, a estadia do escritor francês foi devidamente assinalada pela imprensa andorrana júnior a tempo e horas.

A respeito da mesma, ainda no dia 24 de Maio, diziam respectivamente o Diário de Notícias e o Diário da Manhã o seguinte:

"Está novamente em Lisboa este célebre romancista. Chegou ante-hontem ao Tejo no seu bello yacht a vapor, St Michel, vindo de Nantes em oito dias, tendo arribado em Vigo por ter a machina do navio soffrido uma pequena avaria" (Jácome).

"Passou hontem o dia em Lisboa este illustre escriptor. Chegou ante-hontem no seu yacht Saint-Michel. Às 9 horas desembarcou e foi ter com David Corazzi. Às 6 horas foram jantar cremos ao hotel Braganza, assistindo á refeição o sr. ministro da marinha (Salomão Saragga). Verne esteve fallando muito tempo com o sr. Jorge O'Neill (amigo e anfitrião de Hans Christian Andersen) e ficou tão encantado com esse cavalheiro que tenciona descrevel-o n'um dos romances que vai escrever. Julio Verne parte esta madrugada para Oran [NOTA: na verdade, Verne partiu para Gibraltar, mas provavelmente os conhecimentos geográficos do jornalista eram algo redutores ou uma noite bem passada no Chiado poderá ter propiciado este excelente exemplo da arte de mal informar] " (Jácome).

O Diário de Notícias voltou ao assunto na sua edição do dia seguinte, 25 de Maio:

"Partiu hontem de madrugada, no seu yacht St. Michel para Oran [NOTA: ver NOTA anterior], o romancista Julio Verne. Foi-lhe offerecido na vespera um jantar no Hotel Braganza, e um dos convivas, o sr. Rafael Bordalo Pinheiro, deu-lhe um esplêndido prato de louça das Caldas, representando um lagarto e outros animaes" (Jácome).

Esta última notícia representa, quanto a nós, a chave que permite desvendar o motivo da reacção de Bordalo Pinheiro na caricatura de página inteira que abriu a edição do seu António Maria de 29 de Maio. O caricaturista terá sido completamente apanhado de surpresa com a súbita partida de Verne.

Bordalo que, nesta fase da sua vida, mudara completamente de posição quanto à questão de duração e velocidade de uma viagem e era agora defensor de estadias muito mais pausadas e prolongadas não podia, de forma nenhuma, deixar passar incólume a “fuga” de Verne para “a próxima louca aventura debaixo do céu” (Kerouac, 1998: 208) e a consequente e ultrajante “Dean Moriartização” do escritor francês.

Se o Bordalo dos Apontamentos possuía a “intuição do tempo”, ao Pinheiro de 1884 deveria parecer absolutamente incompreensível que um distinto cavalheiro de uns respeitáveis cinquenta e seis anos a tivesse adquirido tão tardiamente e a tivesse exibido, precisamente, numa visita a Vale de Andorra Júnior, contrariando assim alguns dos rígidos preceitos do código de conduta e de hospitalidade daquele tempo.

Porém, crê-se que não foi este o único motivo que levou à caricatural reacção de Bordalo. Supõe-se que o artista gostaria que Verne tivesse permanecido mais tempo em Lisboa para, primeiro, o poder aliciar a participar como accionista na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, ficando Paul Verne (irmão de Jules que o acompanhou na viagem) como representante comercial da empresa em França e, segundo, para tentar convencer o escritor a recomendar Bordalo como ilustrador junto de Hetzel, o seu editor francês, caso Verne algum dia iniciasse uma colecção paralela às suas Viagens Extraordinárias, intitulada Viagens Sarcásticas aos Mundos Conhecidos e Desconhecidos. Infelizmente, com a curta estadia do escritor, nenhuma destas démarches se efectuou, fazendo assim a estratégia de Bordalo ruir como um frágil castelo de cartas.

O “balanço” de Bordalo sobre a visita de Verne a Lisboa no António Maria, a 29 de Maio de 1884. 

O texto a acompanhar a caricatura diz o seguinte: "Júlio Verne o ilustre escriptor francêz, chegou a Lisboa, jantou com David Corazzi e com outros convidados d'aquelle editor, entre elles este seu creado e foi-se. Só andando com esta pressa, póde fazer viagens à Lua no tempo que qualquer gasta em ir à Porcalhota [antigo nome da Amadora] comer coelho guisado. Que tanto elle como seu irmão Paul, façam boa viagem aos antípodas em 1 hora e ¾ e que se voltarem a Lisboa se demorem mais um bocadinho para lhe mostrarmos o jardim da Europa à beira mar plantado" (Bordalo Pinheiro, 1884).



Apesar de o convite de Bordalo ter ficado feito, Verne nunca mais voltou a este jardim à beira-mar plantado, perdendo assim a inauguração do Museu Nacional de Belas-Artes que ocorreu a 12 de Junho de 1884 (Pinheiro, 2011: 255) e que, em conjunto com a corrida e a exposição hípica do hipódromo de Belém mencionadas acima, constituía o maior acontecimento lisboeta, antes de ser declarada oficialmente aberta a época de silly season nacional, de el-Rei rumar com a família real à vila de Cascais e de o próprio país, também ele fatigado por tantos numerosos eventos, encerrar as suas portas para um sempre mais que merecido período de férias.

Também o altamente sofisticado e tecnologicamente avançadíssimo SAM - Sistema de Arrefecimento Municipal que Lisboa possuía em 1884, e que Bordalo nos apresentou, parece não ter alcançado êxito além-fronteiras, dado que outras grandes metrópoles europeias optaram por continuar a utilizar sistemas, digamos, mais “tradicionais”. Mais surpreendente ainda nos parece o facto de Jules Verne, o apóstolo maior do progresso científico e tecnológico do século dezanove, não ter utilizado o dispositivo como inspiração para nenhuma das suas obras.

Porém, a relação entre Bordalo Pinheiro e Verne não se esgotou inteiramente em 1884. Restam ainda alguns pormenores inconclusivos que devem merecer toda a nossa atenção.

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