sábado, 29 de outubro de 2022

Maio de 1884, neste Vale de Andorra Júnior à beira-mar plantado: irónica crónica de um encontro entre Rafael Bordalo Pinheiro e Jules Verne em Lisboa 2

Acto II – Os anos antes do Encontro: entre as “canções” caricaturais da “ironia demais” e o regresso confinado a Vale de Andorra Júnior

Não há qualquer evidência de que Bordalo Pinheiro tenha voltado ao tema da viagem durante o seu voluntário exílio brasileiro. Depressa se adaptou ao clima do Rio de Janeiro e à doçura de viver do povo irmão. Como afirma José Augusto França: “Bem instalado numa espécie de «república» meio boémia e meio mundana, em breve Bordalo foi pequeno rei na cidade, admirado e naturalmente invejado” (França, 2005: 8).

A Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, recordada pela pena de Bordalo já depois dos seus anos brasileiros (Bordalo Pinheiro, 1881).

Para além de disfrutar plenamente das “cenas da vida boémia” brasileira, à semelhança do que já tinha acontecido em Vale de Andorra Júnior anos antes, o caricaturista envolveu tenazmente a sua pena nas disputas anticlericais que se travavam no último quartel do século dezanove um pouco por toda a parte, através da sua colaboração na imprensa de um Rio de Janeiro (França, 2005: 8-9), naquela época uma cidade onde, parafraseando Vinícius de Moraes, o amor ainda não doía em paz embalado pelas canções da canção do amor demais.

Não obstante a inexistência de elementos factuais que o comprovem, é possível que o quotidiano de mordaz intervenção política de Bordalo Pinheiro possa ter sido agitado por uma pequena notícia que o carioca Jornal do Commércio publicou naquele sábado, 29 de Junho de 1878:

[...] Julio Verne visitou o escritório das Horas Românticas, de que é proprietário o nosso amigo Sr. David Corazzi, que conseguiu por esforços não vulgares fazer publicar em edições luxuosas e em linguagem portuguesa todas as obras daquele escritor, já tão popularizadas entre nós como em toda a Europa (Rego, 2022: 5).

Granjeando já uma popularidade invejável graças à disseminação internacional da sua obra, Jules Verne era um fervoroso adepto da arte de viajar, sobretudo no seu iate Saint-Michel. Foi dele que desembarcou em Lisboa e que agraciou a cidade com a sua presença entre 5 e 7 de Junho de 1878, onde, entre outras solicitações, encontrou-se com David Corazzi, o seu editor, e com Manuel Pinheiro Chagas, seu futuro tradutor (Rego, 2022: 3-4).


Entretanto, em terras de Veracruz, a presença e a intervenção sociopolítica de Bordalo Pinheiro tornaram-se cada vez mais incómodas e menos pacíficas. No final de 1878, ocorreu um assalto ao jornal que detinha, O Besouro, e, como prémio de (ainda maior) intimidação, o caricaturista sofreu dois atentados à sua integridade física, encomendados por “ilustres cavalheiros” que não apreciavam de forma alguma a mordacidade lancinante do seu sentido de humor (França, 2005: 10).

Além de temer pela sua vida e pela vida dos seus, o que atesta um agudíssimo sentido de autopreservação da parte de Bordalo, urge perguntar o seguinte: a somar a isto terá a notícia da presença de Verne em Lisboa surgida no Jornal do Commércio uns meses antes despertado nele novamente o incessante desejo de viajar? Tanto quanto conseguimos apurar, até à data, trata-se de uma questão à qual o conhecimento actualmente disponível dificilmente poderá permitir dar uma resposta adequada.

O que é facto é que, em Março de 1879, não antes sem primeiro assistir ao desfile das escolas de samba do carnaval do Rio, Rafael Bordalo Pinheiro decidiu suspender o dolce caricaturare tutti quanti carioca e zarpar de regresso ao afagante aconchego dos braços d’el-Rei D. Luís, às crepitantes tertúlias do Chiado e às sofisticadas óperas do S. Carlos (França, 2005: 10). Doravante, Bordalo trocaria apenas estas paisagens pela faiança das Caldas da Rainha, pela “civilização” de Paris e, ainda mais compreensivelmente, pelos encantos da italiana Maria Visconti, de quem voltaremos a falar.


 A emocionada despedida de Bordalo Pinheiro a um “dignatário” brasileiro, “avançando para a próxima louca aventura debaixo do céu” de Vale de Andorra Júnior (Bordalo Pinheiro, 1881).

Porém, o regresso de Bordalo à pátria amada não se deu sob os melhores auspícios. Por vezes, a vida imita a arte com a mesma veia irónica e mordaz que o artista imprime à sua criação. Se anteriormente, nos Apontamentos de 1872, ele tinha sujeitado o imperador de Raslib a uma situação de confinamento na primeira visita deste a Vale de Andorra Júnior, desta vez foi o pequeno e humilde Vale que efectivamente fez Bordalo cumprir um período de confinamento no Lazareto, um edifício situado em Porto Brandão que estava destinado a ter como residentes temporários todo e qualquer um que fosse suspeito de ser portador de doenças contagiosas.

Embora a ironia e o sarcasmo não constassem da lista de doenças contagiosas da época, o caricaturista ficou encerrado na margem sul do Tejo durante um período de tempo assinalável e descreveu esta “louca aventura debaixo do céu” (Keroauc, 1998: 208), bem como a sua estância brasileira, no Lazareto de Lisboa, publicado em 1881.


Ao passo que Bordalo Pinheiro voltava, Verne, por seu turno, sem necessidade de abandonar a pacata e provincial tranquilidade da cidade de Amiens, nesse mesmo ano, e dando continuidade à sua arte de viajar, resolveu igualmente “visitar” o Brasil no seu romance, A Jangada. No entanto, muito mais avaro aos trepidantes e encantatórios devaneios urbanos brasileiros a que Bordalo Pinheiro se acostumara durante os seus anos Veracruz, o escritor francês optou por evitar a ebulição febril do carnaval do Rio de Janeiro e, em vez disso, escolheu as paisagens mais recatadas, selvagens e solitárias da Amazónia para mais uma das suas Viagens Extraordinárias.

Neste ponto da nossa irónica crónica, torna-se necessário esclarecer que, desde a sua primeira obra traduzida e publicada em 1874 (Da Terra à Lua), a popularidade de Verne em Vale de Andorra Júnior foi aumentando exponencialmente a cada ano que passava, muito por força do sofisticado trabalho de edição desenvolvido por David Corazzi, propiciando aos seus leitores uma salutar alternância entre horas laborais, horas de lazer e horas românticas, mas também pelo destaque dado ao escritor francês pela imprensa andorrana júnior da época. O escritor tinha direito a artigos de primeira página.


Verne no jornal O Camões de 13 de Janeiro de 1881. Não há provas de tal, mas este poderá ter sido o primeiro contacto visual de Bordalo com o escritor francês.

Se até este momento os destinos de Rafael Bordalo Pinheiro e de Jules Verne quase que poderiam ter-se cruzado sem tal, de facto, ter acontecido, isso veio a concretizar-se a 23 de Maio no ano da Graça de 1884. Nesse dia (ou melhor, nessa tarde e nessa noite), Bordalo Pinheiro reviu definitivamente a sua ideia sobre a duração da viagem.  

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