sábado, 29 de outubro de 2022

Maio de 1884, neste Vale de Andorra Júnior à beira-mar plantado: irónica crónica de um encontro entre Rafael Bordalo Pinheiro e Jules Verne em Lisboa 4

Acto IV – E depois do adeus: por entre passeios à beira-rio com actrizes francesas e italianas em Lisboa e Paris e uma inconclusiva reflexão sobre a “intuição do tempo”

Ainda hoje constitui motivo de alguma especulação a apressada partida de Verne de Lisboa naquele já distante ano de 1884. Se há quem aponte a vontade do escritor francês de, após um períplo de três dias pela pérola do Tejo, ter uma absoluta necessidade de regressar a uma cidade europeia (o que até nem foi o caso), investigações feitas já em pleno século vinte por distintos estudiosos Vernianos vêm sugerir outras hipóteses.

Entre eles, encontra-se Daniel Compère que, em 1973, devotou um interessantíssimo estudo à relação de Verne com Vale de Andorra Júnior. No fim do seu detalhado texto, referindo-se à segunda visita do escritor a Lisboa, Compère aduz a possibilidade de, após o jantar e a soirée teatral da noite de 23 de Maio de 1884, Verne ter resolvido dar um passeio com uma jovem actriz parisiense que, à data, estava em tournée na capital (Compère, 1973: 414).

A inexistência de paparazzis ou de revistas cor-de-rosa naquela época impedem-nos de confirmar ou infirmar a veracidade desta afirmação de Compère, no entanto, uma vez mais a arte de Rafael Bordalo Pinheiro poderá lançar alguma, ainda que muito pouca, luz sobre o assunto.

Não existe qualquer indício de que a decepção de Bordalo pela veloz visita de Verne a Lisboa tenha persistido durante muito tempo. Que se saiba, o artista não foi acometido de nenhum delírio de tipo sebastianista, mandando verificar diariamente os registos do tráfego marítimo do porto de Lisboa ou contratando algum detective privado da Agência Pinkerton que se prostrasse no Cais das Colunas na vã esperança de ver um iate chamado Saint-Michel III aportar, de novo, na barra do Tejo.

Em 1885, Bordalo continua a seguir o seu caminho natural: dá por encerrada a primeira série de António Maria e, sempre fiel à sua divisa de intervenção política, inicia um novo projecto jornalístico cujo título não poderia ser mais contundente: Pontos nos ii

É numa directa alusão a Verne neste jornal que cremos encontrar algum eco que, de certo modo, talvez possa sustentar a afirmação de Compère. A haver a, ainda que remota, possibilidade de o passeio de Verne com a jovem actriz francesa ter efectivamente acontecido, tal informação não deixaria de circular nos meandros mais secretos da intelligentsia lisboeta, talvez na própria época em que tal se passou ou algum tempo mais tarde.

Fazendo parte dessa intelligentsia, seria quase impossível Bordalo Pinheiro não ter tido conhecimento do facto. A quase certeza de que ele só terá tido conhecimento do mesmo bastante tempo depois, e já bastante adulterado por diversas almas ingénuas e românticas que teriam afirmado ter visto Verne partir de Lisboa na companhia da jovem actriz naquela madrugada de 24 de Maio de 1884, afigura-se igualmente bastante possível.

Mesmo que tal não tenha sido verdade, e é quase absolutamente seguro que não o seja, tal história teria encontrado um eco tremendamente acolhedor no coração de um Bordalo Pinheiro que vivia, então, sob as caprichosas flechas que Eros lhe tinha resolvido enviar através de uma actriz italiana chamada Maria Visconti, residente em Vale de Andorra Júnior desde 1881 e que era companhia frequente do artista nas Caldas da Rainha (Rosa, 2018).

 Maria Visconti ou La Dolce Vita de Rafael Bordalo Pinheiro.

Poderão os encantos da Bella Visconti, de alguma forma, terem refreado a indomável torrente de mordacidade de Bordalo no que toca a Jules Verne? É algo que não podemos afirmar com certeza, mas na última evocação que o artista faz do escritor francês na imprensa andorrana júnior denota-se, claramente, uma vertente de ironia temperada por um jovial sentimento de genuíno e “maravilhoso” contentamento.


Bordalo visivelmente feliz em mais uma caricatura para o Pontos nos ii (de 13 de Março de 1886).

Consoante o que conseguimos apurar, terá sido esta a última referência de Bordalo ao escritor francês. Poderão eventualmente ter-se cruzado em Paris, no ano de 1889, onde, entre frequentes visitas aos cabarets de Montmartre e passeios à beira do Sena com Maria Visconti, Bordalo Pinheiro dirigia os preparativos do pavilhão de Vale de Andorra Júnior para a Exposição Universal, contudo as fontes são profundamente omissas e não permitem a tirar ilações conclusivas sobre tal possibilidade.

No ano de 1905, ambos fariam uma última viagem, desta vez sem qualquer possibilidade de regresso. Primeiro foi Rafael Bordalo Pinheiro a 23 de Janeiro. A 24 de Março, Bordalo seria secundado por Jules Verne. Teriam finalmente coincido os dois relativamente ao tema da viagem? Mais uma vez trata-se de algo difícil de determinar. Isto porque, com a pressa com que ambos empreenderam tal jornada, nunca foi possível verdadeiramente apurar qual dos dois teria uma maior “intuição do tempo”.


FIM


Bibliografia

Compère, D. (1973). Les Portugais et les Brésiliens dans l’oeuvre de Jules Verne. In Massa, J.M., La Bretagne, le Portugal, le Brésil – Échanges et rapports, Volume 1 Rennes: Univerisité de Haute Bretagne, 395-415.


Diário Ilustrado, 22 de Maio de 1884.


França, J.A. (2005). O essencial sobre Rafael Bordalo Pinheiro. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
 

Jácome, F. (2014), Há 130 anos J. Verne voltou a Portugal [Online] Disponível em https://jvernept.blogspot.com/2014/05/ha-130-anos-j-verne-voltou-portugal.html [consultado em 2 de Julho 2022].


Kerouac, J. (1998). Pela estrada fora. Lisboa: Relógio de Água.


Pinheiro, R.B. (1872). Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Raslib pela Europa. Lisboa: S/I.


Pinheiro, R.B. (1881). No Lazareto de Lisboa. Lisboa: Empreza Litterária Luso Brazileira – Editora.


Pinheiro, M. (2011). Biografia de Lisboa. Lisboa: A Esfera dos Livros.


Quaresma, J.P. (2020). A alunagem de Júlio Verne no Chiado e o “Guisado na Porcalhota”. Entre o Chiado, o Carmo e Paris: artes na esfera pública. Lisboa: FBAUL.


Rego, B. (2022). Once Upon a Time in Lisbon. The Extraordinary “Editorial Voyages” of Lusitânia Verne 1874-2021. Verniana, Volume 13 (2022-2023), 1-53.


Rosa, V. (2018). O amor italiano de Bordalo Pinheiro. [Online] Disponível em https://observador.pt/2018/05/19/o-amor-italiano-de-bordalo-pinheiro/ [Consultado em 3 de Julho de 2022].


Silva, R.H. (2007). O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro: Uma iconologia de ambivalência. Revista do IHA, N.3, 238-253.


(2019). Hotel Bragança ou Braganza Hotel [Online] Disponível em https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2019/07/hotel-braganca-ou-braganza-hotel.html [Consultado em 3 de Julho 2022].

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