sábado, 29 de outubro de 2022

Maio de 1884, neste Vale de Andorra Júnior* à beira-mar plantado: irónica crónica de um encontro entre Rafael Bordalo Pinheiro e Jules Verne em Lisboa 1

*Nome pelo qual Rafael Bordalo Pinheiro designa Portugal nos Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Raslib pela Europa (1872) e que pretende exprimir, sobretudo, a sua posição anticlerical e criticar a excessiva influência que a Igreja continuava a ter no Portugal de então. A designação pretende comparar o país com o Principado de Andorra que, na época, era governado simultaneamente por um membro da Igreja e por um governante laico. O autor desta crónica segue o “Acordo Ortográfico Bordaliano” de 1872, e não só, para se referir a Portugal no texto que a seguir se dá a conhecer.


“Quero ser como ele. Nada o detém, segue em todas as direcções (…), tem a intuição do tempo, não precisa de fazer nada a não ser mover-se para trás e para diante” (Jack Kerouac, Pela Estrada Fora, 169).

“Que sentimento é esse que temos quando vamos de carro e nos afastamos das pessoas e elas vão diminuindo de tamanho na planície? É o mundo demasiado grande a pesar-nos, é o adeus. Contudo, curvamo-nos avançando para a próxima louca aventura debaixo do céu” (Jack Kerouac, Pela Estrada Fora, 208).


Acto I – “Começou por me dizer que o seu caso era simples – e que se chamava Rafael …” ou como se passa de oito a oitenta em viagens à volta do mundo

Tanto quanto se sabe não existem grandes afinidades entre o percurso de Rafael Bordalo Pinheiro e de Jules Verne. O primeiro foi um dos mais notáveis e multifacetados artistas portugueses da segunda metade do século dezanove. O segundo, também no mesmo período, foi o expoente máximo de uma escola literária que posteriormente se designou como romance de antecipação científica ou, mais correntemente, como ficção científica. A fama do primeiro ficou circunscrita primordialmente ao mundo português. O nome do segundo não só conquistou o mundo português, como também o mundo inteiro.

Porém, há uma afinidade que ambos parecem partilhar: o tema da viagem, sobretudo, o da viagem à volta do mundo. Talvez fruto de uma fogosidade vivaz própria de um temperamento jovem e irrequieto e da riquíssima herança marítima inscrita em imensas páginas da história nacional, no seu eloquente domínio da cátedra de ironia aplicada, Bordalo Pinheiro antecipa em várias décadas a inquietude, a velocidade e a intensidade vertiginosa que a viagem pode assumir e que encontramos, por exemplo, em Dean Moriarty, personagem de Pela Estrada Fora (1957), o clássico livro de Jack Kerouac.


O Imperador de Raslib (Pedro II do Brasil) ou, simplesmente, Pedro da Pampulha em viagem pelo mundo. Teria ele, tal como Moriarty, a “intuição do tempo”? (Bordalo Pinheiro, 1872).


Não existe qualquer registo de que Jules Verne tenha tido conhecimento dos Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Raslib pela Europa. No entanto, à data em que Bordalo publica os seus Apontamentos, 1872, o escritor francês encontrava-se, seguramente, no mesmo comprimento de onda mental do caricaturista português e debatia-se, também, com o tema da viagem, sobre o qual publicaria no ano seguinte aquela que se tornaria a sua obra mais famosa de sempre.

Dezoito anos mais velho que Bordalo e, por isso, mais circunspecto e ponderado, mais avisado e versado nas prodigiosas conquistas científicas e tecnológicas do século dezanove, Verne não corrobora a duração da viagem do Imperador de Raslib pelo mundo. Com os critérios de rigor científico pelos quais a sua obra ficou conhecida, o escritor afirma categoricamente que o factor tempo da viagem teria que ser multiplicado por dez.


Primeira edição portuguesa (1874) da obra mais famosa de Jules Verne. Como se pode ver, o escritor era alheio ao “síndrome Neal Moriarty”.


É provável que Bordalo Pinheiro tenha tido conhecimento deste facto porque a obra de Verne foi publicada em Portugal, no ano de 1874, pela Empresa Horas Românticas, do seu amigo e futuro editor, David Corazzi. O que até hoje não se conseguiu apurar por falta de fontes credíveis, e trata-se apenas de uma dúvida que palpita na mente do autor destas linhas, é se a conclusão do escritor francês sobre a duração de viagens à volta do mundo, de alguma forma, terá influenciado o caricaturista, um ano depois, primeiro, a criar a figura do Zé Povinho, esse indelével traço de fundo antropológico de identificação de uma nação (Silva, 2007: 238), e, depois, a “apagar” a sua Lanterna Mágica e emigrar durante quatro anos para terras de Veracruz (França, 2005: 8).

No entanto permanece como factual o seguinte: as posições que ambos ostentavam sobre o tema da viagem naqueles anos de 1872 e 1873 iriam sofrer uma surpreendente e radical alteração na década seguinte, fruto de um encontro entre Bordalo Pinheiro e Verne, aquando da segunda visita do escritor francês à capital de Vale de Andorra Júnior. É essa história que propomos contar nos posts seguintes.

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