O período cronológico entre 1974 e 2021 é possível de ser retratado de forma mais telegráfica por duas razões: primeiro pela sua menor dimensão temporal face ao período de 1874-1973, mas, sobretudo, pelos critérios de nítida unidimensionalidade do próprio mercado editorial português no que diz respeito à obra de Verne.
O ano de 1974 trouxe uma democratização não só do regime político português, mas também da edição Verniana em terras lusas. Esta democratização teve aspectos positivos, porém pouco inovadores, face à posição (não somente em número de traduções e de vendas) que Jules Verne ocupa, ainda hoje, no panorama literário mundial.
A Bertrand prosseguiu a reedição da obra do escritor, apresentando apenas a publicação de um único título até então inédito (A caça ao meteoro, 1978), mas eclipsou-se paulatinamente do mercado para dar lugar a novos selos editoriais nas três décadas seguintes.
Na segunda metade da década de 1970, bem como nas décadas de 1980 e 1990, a publicação das obras do escritor foi feita pela já citada Europa-América, mas também pelo Círculo de Leitores, Livros do Brasil, Amigos do Livro e outros projectos editoriais de maior ou menor relevância que existiram nestes anos. Contudo, a estratégia comercial seguida por todas estas editoras pautou-se sempre por um espírito demasiado púdico e conservador: uma vez mais, todas elas publicaram apenas os títulos mais conhecidos junto do público.
A única e honrosa excepção a este cenário é a das Edições António Ramos. Entre 1978 e 1981, esta chancela publicou títulos ainda inéditos em Portugal como A espantosa aventura da Missão Barsac (1978), O segredo de Wilhelm Storitz (1978), O piloto do Danúbio (1980) ou O homenzinho (1981), além das novelas de Ontem e amanhã (1978).
Outra excepção digna de elogio: as obras inicialmente escritas por Michel Verne e recuperadas pela Société Jules Verne foram publicadas no início dos anos 2000 pela já extinta Editorial Notícias: A caça ao meteoro (1999), O segredo de Wilhelm Storitz (1999), O vulcão de ouro (2000), Um padre em 1839 (2001) e Le Phare du bout du monde (2005). Relativamente a obras inéditas, devemos também referir as duas excepções à Editorial Notícias: O tio Robinson (1991) publicado pela Livros do Brasil um ano depois da sua edição original e o ressurgimento de Verne na Bertrand com Paris no século vinte (1994) em 1995.
A primeira década deste século, e a celebração do primeiro centenário da sua morte (2005), impulsionou um crescimento do interesse pela obra de Verne em Portugal: dois jornais diários, o Correio da Manhã (2002-2003) e o Público (2005) lançaram uma colecção (algo) parcial das suas obras.
A edição de maior fôlego do corpus Verniano não coube, porém, a uma editora portuguesa, mas sim à espanhola Editorial RBA que, em 2003, lançou uma colecção de sessenta e sete volumes actualizando, em parte, o “método Corazzi” dos anos 1870: distribuição semanal de um volume (em vez de fascículos) em papelarias e quiosques de jornais. Infelizmente, esta colecção nunca foi disponibilizada em livrarias, o que impediu a sua divulgação mais ampla junto de um público mais vasto.
Há factores muito positivos na colecção da RBA como a possibilidade dos leitores contactarem com obras menos conhecidas de Verne. Contudo, o aspecto mais negativo é o de recorrer de forma sistemática às traduções do século dezanove sem qualquer revisão de texto efectuada por tradutores contemporâneos. Embora só se encontre disponível em alfarrabistas, a edição da RBA continua a ser a mais completa porta de entrada das obras de Jules Verne lançada em Portugal no século vinte e um.
A década de 2010-2020, e o início da década de 2020, prosseguiram o mesmo tipo de estratégia comercial unidimensional. A obra de Verne regressou, por assim dizer, à sua “casa-mãe” do século vinte, isto é, à Bertrand, que tem reeditado as suas obras mais populares (com novas traduções ou traduções revistas), através da editorial 11x17, que faz parte do seu grupo empresarial.
O mesmo tipo de estratégia tem sido seguida por outras editoras de maior ou menor dimensão, sem que seja possível ter acesso directo em livrarias a obras menos conhecidas de Verne. Para consegui-las, as bibliotecas públicas e os alfarrabistas continuam a ser os melhores recursos para os leitores mais ávidos do autor.
Para terminar, e ainda de acordo com a nossa pesquisa bibliográfica, pelo número de edições que conheceu em quase cento e cinquenta anos, A volta ao mundo em 80 dias continua a ser a obra mais popular de Verne em Portugal. Continuamos, no entanto, a aguardar a edição portuguesa das suas obras completas. Esperemos apenas, sinceramente, que esta “volta ao mundo” editorial do Lusitânia Verne, a acontecer, não leve oitenta anos a completar-se.
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