terça-feira, 29 de novembro de 2022

Jules Verne e a Cidade 1 - Amiens no Ano 2000 (Uma Cidade Ideal, 1875)

Uma Cidade Ideal foi uma palestra proferida por Jules Verne na Academia das Ciências, Belas Letras e Artes de Amiens, a 12 de Dezembro de 1875. Em 1877, o autor quis publicar este texto nas Viagens Extraordinárias. Avesso aos devaneios futuristicos Vernianos, o seu editor, Pierre-Jules Hetzel, recusou. Em Portugal, Uma Cidade Ideal seria publicada, em 1980, na colectânea de textos editada pelas Edições António Ramos (foto acima), não conhecendo qualquer edição posterior. O que se oferece em seguida é uma espécie de roteiro turístico para viajantes que decidam visitar a Amiens de Verne.  


Antes de pensar em partir, tenha em mente o seguinte: Amiens pode ser um lugar de contrastes. Se for apreciador do progresso tecnológico, o viajante que deseje conhecer esta cidade poderá ficar agradavelmente surpreendido com o seu dinamismo e modernidade. Porém, o viajante mais pacato e conservador não deixará de se sentir algo incomodado com as avenidas repletas de transeuntes, em que se circula com alguma dificuldade, dependendo das horas do dia.

Ao apaixonado pelo progresso impõe-se uma deslocação à rua Lemercier. Esta extensa artéria, ladeada por modernas e confortáveis habitações que se estendem nos dois sentidos até ao cimo da costa, apresenta-se convidativa para um longo e demorado passeio. Aqui o viajante vai deparar-se com os mais recentes progressos arquitectónicos, tanto nas habitações privadas como nas diversas igrejas que foram sendo construídas em anos recentes. A melhor forma de chegar à rua Lemercier é utilizar os transportes públicos. A carreira do eléctrico F, que vai de Nossa Senhora aos Reservatórios, tem paragem nesta rua.

Da ponte construída sobre a linha férrea, o viajante poderá ter uma vista panorâmica sobre os caminhos-de-ferro de Amiens. Desde que a Companhia da Picardia e Flandres foi vendida à Companhia do Norte, os comboios são construídos segundo o melhor estilo americano. As carruagens são aquecidas, especialmente nos meses de inverno, e primam pelo conforto e pelo asseio.

Amiens regista, também, notáveis melhoramentos na circulação pedonal. As calçadas das avenidas principais revestidas com pavimento de paralelepípedos de pórfiro substituíram os antigos passeios de lama argilosa, evitando assim que a população fique enlameada até aos tornozelos nos constantes dias de chuva que se costuma abater sobre a cidade no outono e no inverno. As alamedas secundárias estão, também elas, revestidas de betão.
 

O viajante não deixará de ficar surpreendido com a beleza dos jardins da cidade. As suas árvores e plantas são tratadas e regadas regularmente, denotando o singular cuidado que o município tem nesta importante dimensão do planeamento urbano. Para lá do seu aspecto estético, estes espaços verdes são, também, para pleno usufruto público: entre cada duas árvores, há bancos duplos com costas para que a população possa sentir-se (e sentar-se) tão próxima da natureza quanto um jardim permite e os candelabros de bronze erguidos até à altura dos castanheiros, além de iluminarem bem o espaço circundante, transmitem uma visível aura de segurança que se nota na tranquilidade que perpassa no rosto de quem ali flaneia. 

Quem pensar em deslocar-se a Amiens em busca de companhia irá ficar desiludido. Um dos aspectos mais curiosos da cidade é o facto de haver poucos ou nenhuns solteiros do sexo masculino e, muito menos ainda, do sexo feminino. O viajante irá encontrar apenas pares casados que se deslocam de braço dado, acompanhados por cardumes de crianças. Esta situação explica-se facilmente. Existe um imposto municipal que taxa severamente o celibato e, por isso, é raro encontrar rapazes maiores de dezoito anos e raparigas com mais de dezasseis que estejam ainda livres dos agrilhos que o santo matrimónio impõe.

Se o viajante poderá ficar algo surpreendido com os efeitos práticos do imposto sobre o celibato, mais perplexo ficará ao saber que a educação em Amiens versa apenas sobre as áreas da ciência, do comércio e da indústria, não havendo lugar para o ensino de outras disciplinas. O latim e o grego, por nítida falta de utilidade para os desafios da vida prática, há muito que deixaram de fazer parte dos currículos escolares.

Apesar disso, a cidade devota alguma atenção às artes e é inovadora, sobretudo, no domínio da música: aqui foi composta a famosa Reverie em Lá menor sobre o Quadrado da Hipotenusa. Esta peça de música futurista é constantemente tocada por bandas filarmónicas em toda a cidade e, certamente, agradará ao viajante mais melómano, aberto a novas experiências auditivas e culturais.

Outra manifestação artística apreciada por estas paragens são os concertos eléctricos, nomeadamente no amplo auditório da rua de Rambuissons. É ali que os mais vanguardistas costumam deliciar-se com os concertos à distância que o grande Pianowski costuma dar desde o Teatro Hertz, em Paris. 

Eis alguns dos aspectos mais significativos desta urbe peculiarmente moderna e amplamente virada para o bem-estar e conforto materiais, na senda do progresso tecnológico e industrial. Se o seu coração pender fortemente para o futuro, o viajante irá sentir-se em casa nesta cidade. Mas se, por outro lado, o seu intelecto for mais refinado que o seu pragmatismo e se preferir Bach e Beethoven ou Homero e Virgílio à imparável ideia de progresso, viajante, faça um favor a si mesmo: 

- De forma alguma, nunca na sua vida, pense em deslocar-se a Amiens...

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