quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Jules Verne e a Cidade 5 - Paris, Agosto de 1960 3 (Paris no Século XX, 1994)


A evolução da história urbana da Paris real no século vinte, de certa forma, veio confirmar várias das tendências antecipadas por Verne em 1863. E essas consumar-se-iam a partir do início da década de 1960. Até um pouco antes disso. Quando é que o “cenário Verniano” se manifestou visivelmente no espaço parisiense?

Louis Chevalier, na sua obra clássica publicada em 1977, L’Assassinat de Paris, afirma que foi na segunda metade da década de 1950 (Chevalier, 1997: 27-28). A partir desse momento, uma nova racionalidade económica e uma visão tecnocrática tomaram conta, em definitivo, da gestão urbanística da capital francesa, transformando radicalmente a paisagem parisiense nas duas décadas seguintes (Chevalier, 1997: 10-11).

A Quinta República (1958 até ao presente) tinha uma visão e planos muitos específicos para Paris. Segundo Charles Rearick, para os urbanistas, “o imperativo crítico era a reforma de Paris para que esta pudesse servir as necessidades de uma sociedade do século vinte e uma economia moderna que se desenrolava a toda a velocidade (Rearick, 2011: 85). Decorrente deste novo imperativo económico, Chevalier identifica, já na década de 1960, o início de um certo processo de unidimensionalização da vivência dos lugares culturais e históricos da cidade (Chevalier, 1997: 305).

Esse processo de unidimensionalização viria a crescer com o tempo e a deixar cada vez mais vestígios subtis do declínio do valor social das artes e humanidades no espaço da cidade. Em 1976, por exemplo, Jean-Paul Crespelle constatava que a substituição da fauna de artistas e escritores por uma horda de bancários, gestores e funcionários de grandes empresas nos cafés e restaurantes de Montparnasse estava a retirar-lhe toda a identidade que tinha tido nos seus gloriosos anos boémios da década de 1920 (Crespelle, 1976: 139).

As décadas seguintes, e principalmente as duas primeiras deste século, não fizeram mais do que acelerar esta tendência no espaço real de Paris. A consulta de vários artigos de jornal publicados nos últimos anos remetem-nos para o seguinte cenário: encerramento de cinemas e livrarias históricas (Thomas, 2021), prevalência da especulação imobiliária em zonas históricas como Montmartre (Gairaud, 2021) ou o Quartier Latin que substituem lojas históricas por espaços comerciais de empresas multinacionais (Gairaud, 2021; Meheut, 2021), ao ponto de a histórica diferença identitária entre a margem direita e a margem esquerda da cidade estar-se lenta e gradualmente a dissolver (Noel, 2009).

É Giles Schlesser, contudo, que resume numa frase certeira a transição histórica que a relação entre um imperativo económico hegemónico e o declínio do valor social das artes e humanidades provocou em Paris nas últimas décadas:

É verdade que já há muito que «não existe um depois em Saint-Germain-des-Prés», tendo o bairro substituído ao longo do tempo as suas divisas literárias por outras mais titubeantes De Sartre a Armani, de Vian a Cartier, de Gréco a Vuitton, que longo caminho percorrido… (Schlesser, 2014: 8).

Ao contrário das inúmeras antecipações científicas, talvez tenha sido esta a maior e a mais ousada que Jules Verne fez na sua longa carreira literária: a do declínio do valor social das artes e humanidades no(s) espaço(s) urbano(s) em que vivemos. E se, para a elaboração da maior parte das suas obras, Verne foi auxiliado por patentes ou ideias já existentes, em 1863, para imaginar o declínio das artes e humanidades, o escritor podia contar apenas com a sua imaginação porque este fenómeno estava fora de cogitação na segunda metade do século dezanove. E se foi na segunda metade do século vinte que ele se iniciou, é no século vinte e um que ele tem-se vindo a consumar de forma cada vez mais vertiginosa.


Bibliografia

Chevalier, L. (1997). L’Assassinat de Paris. Paris: Editions Ivrea.

Crespelle, J.P. (1976). La Vie Quotidienne à Montparnasse a la Grande Epoque 1905-1930. Paris: Hachette.

Gairaud, A.M. (2021). Paris : le collectif «Sauvons Montmartre» s’oppose à la bétonisation du quartier [Online], disponível em leparisien.fr/paris-75/paris-le-collectif-sauvons-montmartre-s-oppose-a-la-betonisation-du-quartier-20-03-2021-8429273.php [consultado em: 27 Outubro 2021].

Gairaud, A.M. (2021). Paris : Covid-19, loyers exorbitants… la longue agonie des commerces du boulevard Saint-Michel [Online], disponível em https://www.leparisien.fr/paris-75/paris-covid-19-loyers-exorbitants-la-longue-agonie-des-commerces-du-boulevard-saint-michel-28-09-2021-O55UBIT65RGB7JW6XQCHI6HJ2Y.php [consultado em: 27 Outubro 2021].

Meheut, C. (2021). In the Latin Quarter, Paris’ intellectual heartbeat grows fainter with the loss of bookstores. [Online], disponível em https://www.seattletimes.com/nation-world/in-the-latin-quarter-paris-intellectual-heartbeat-grows-fainter-with-the-loss-of-bookstores/ [consultado em: 27 Outubro 2021].

Noel, J. (2009). Left Bank vs. Right. A Tale of Two Cities. [Online], disponível em https://www.chicagotribune.com/news/ct-xpm-2009-04-12-0904090490-story.html [consultado em: 15 Outubro 2021].

Rearick, C. (2011). Paris Dreams, Paris Memories. The City and Its Mystique. Stanford: Stanford University Press.

Schlesser, G. (2014). Saint-Germain-des-Prés, Les Lieux de Legende. Paris: Parigramme.

Thomas, V. (2021). En 20 ans, Paris a perdu 405 librairies. [Online], disponível em https://www.livreshebdo.fr/article/en-20-ans-paris-perdu-405-librairies [Consultado em: 29 Outubro 2021]

Verne, J. (1994). Paris au XXe siècle. Paris: Hachette.

Wiser, W. (1983). The Crazy Years: Paris in the Twenties. New York: Atheneum.

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