quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Jules Verne e a Cidade 2 - France-Ville (Os Quinhentos Milhões da Begume, 1879)


France-Ville é uma cidade francesa localizada no estado americano do Oregon e fundada na década de 1870 pelo Dr. François Sarrasin, médico higienista que exercia a sua actividade profissional em Paris, após ter herdado uma fortuna da Índia. Tem uma população de cem mil habitantes e, ao que se sabe, é a primeira cidade do mundo construída de raiz puramente com base em rigorosos dados científicos. As suas principais divisas são a saúde pública e o bem-estar colectivo.

Para o viajante que a deseje visitar, a forma mais prática de lá chegar é através das ligações ferroviárias que ligam a cidade a Portland ou a Salem, capital do Oregon. Uma das primeiras preocupações do Dr. Sarrasin foi a de construir amplas vias de comunicação, de forma a possibilitar o rápido desenvolvimento de France-Ville.

O plano da cidade é absolutamente geométrico e matemático. As ruas, cruzadas em ângulos rectos, têm distâncias e comprimentos iguais. O viajante ficará surpreendido com o ar saudável da cidade, fruto da abundância de árvores que nela existem. No pico do verão, as suas frondosas sombras são bastante procuradas quer pelos seus habitantes, quer pelo número cada vez maior de turistas que se ali deslocam.

A circulação urbana é maioritariamente assegurada por eléctricos e pelos caminhos-de-ferro metropolitanos. As suas carruagens são extremamente limpas e arejadas. Além da saúde pública, em France-Ville, a cultura não foi esquecida. O viajante que deseje circular a pé pelas suas ruas irá deparar-se, em cada encruzilhada, com um jardim público ornamentado por reproduções de grandes obras-primas da escultura.

Os habitantes são um fiel reflexo da cidade: todos primam pela higiene e pelo asseio. Essa foi, aliás, uma de várias directivas implementadas pelo Dr. Sarrasin quando decidiu fundar France-Ville. À chegada, o viajante recebe uma pequena brochura onde se encontram expostos, de forma simples e clara, os preceitos de uma vida regulada pela ciência e que devem ser seguidos por todos os cidadãos. Quem for descuidado em relação à sua aparência ou à sua higiene pessoal verá recusado o direito de entrar ou de permanecer na cidade.

Todas as actividades profissionais são permitidas, no entanto privilegiam-se as profissões úteis na indústria, no comércio ou nas artes liberais. O viajante que deseje estabelecer-se definitivamente em France-Ville deverá vir munido de cartas de recomendação que atestem as suas qualidades pessoais e aptidões profissionais. E se respeitar escrupulosamente as leis de saúde pública da cidade, rapidamente será acolhido pelo resto da população.

A saúde individual e colectiva é a razão de ser de France-Ville. Além de possuir uma polícia sanitária encarregada de fazer cumprir escrupulosamente, mas de forma gentil, as leis sanitárias estipuladas pelo Dr. Sarrasin, as penas para quem infringir qualquer uma das normas estabelecidas é extremamente severa, podendo ir de simples multas pecuniárias até, em último caso, à expulsão da cidade. Até hoje, não há registo de alguém ter sido expulso de France-Ville.

De forma a evitar a propagação de epidemias, a cidade possui também regras estritas em relação à construção de edifícios. Estas foram descritas por um cidadão francês, um tal de J. Gabriel Verne, que, segundo consta a informação disponível nos arquivos municipais, terá sido um dos primeiros visitantes de France-Ville. Eis, segundo Verne, algumas dessas regras:

“1 – Cada edifício estará isolado num lote de terreno plantado de árvores, relva e flores. Destinar-se-á a uma só família;

2 – Nenhuma casa terá mais de dois andares; o ar e a luz não devem ser monopolizados por uns em prejuízo de outros;

3 – Todas as casas terão a frente à distância de dez metros da rua, da qual estarão separadas por uma grade à altura de meio corpo”.

A acrescentar a isto, o viajante deverá estar ciente que, na decoração das casas, as alcatifas, os papéis de parede, bem como os almofadões de penas, estão absolutamente proibidos. Tudo em nome da saúde pública e do bem-estar de uma cidade que se quer arejada e livre de doenças e pandemias.

Se for amante de uma vida saudável absolutamente regulada pela ciência, de espaços limpos e arejados e de não ter que gastar avultadas quantias em seguros de saúde, o viajante ficará deliciado em conhecer, e talvez instalar-se em, France-Ville. Contudo, se for daqueles que prefere duches uma vez por mês, cabelos desgrenhados por colónias de piolhos, altos índices de poluição atmosférica, anarquia urbana caótica e arranha-céus a perder de vista, viajante, faça um favor a si mesmo:

- Fique-se por Chicago ou Nova Iorque e finja nunca ter ouvido falar de France-Ville…

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