quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Jules Verne e a Cidade 3 - Paris, Agosto de 1960 1 (Paris no Século XX, 1994)

Escrito por Jules Verne em 1863, Paris no Século XX foi recusado por Hetzel, o seu editor por estar longe dos pergaminhos literários de Cinco Semanas em Balão e pelo tom demasiado sombrio que o escritor lhe imprimiu. Hetzel tinha alguma razão: Paris no Século XX não prima pela qualidade literária e, no seu tempo de vida, Verne nunca fez uma revisão da obra. Esta andou perdida mais de um século e foi redescoberta, em 1989, pelo bisneto do escritor, Jean-Jules Verne, num cofre ferrugento esquecido numa garagem de uma casa, em Toulon, que a família Verne decidiu vender. Foi publicada pela primeira vez em França, em 1994.  O texto que se segue é uma adaptação de algumas partes do artigo "From Paris in the 20th Century to Lisbon (and Paris) in 21st Century: The Monotonization of the Wolrd in the Idea and Space of the Contemporary City" que publiquei na revista Verniana, em Dezembro de 2021.


Paris, início da década de 1960. É a época para onde Verne nos transporta e onde decorre a acção do seu romance. Paris, metrópole financeira e cosmopolita, Meca do florescimento económico onde “(…) havia, pois, uma abundância de capitais, e mais ainda de capitalistas, em busca de operações financeiras ou de negócios industriais” (Verne, 1994: 27). Substitua-se aqui negócios industriais por negócios tecnológicos e digitais e reconhece-se facilmente a semelhança desta Paris com qualquer grande metrópole actual.

Paris já não é a grande capital das belas-artes e das les belles-lettres. É o expoente máximo, a cristalização consumada de uma modernidade tecnocientífica e tecnoeconómica numa fase de avançada maturidade histórica. A sua essência reduz-se à sagrada trindade do capitalismo, velocidade, eficiência e produtividade, “(…) onde a multiplicidade dos negócios não consentia qualquer descanso nem nenhum atraso” (Verne, 1994: 43). Em que a evolução de meios de comunicação como a telegrafia eléctrica e a telegrafia fotográfica (Verne, 1994: 61) permitem interacções e transacções comerciais à distância.

Traçada em longas e largas avenidas, de forma a permitir a incessante circulação de tráfego e onde, repare-se neste sublime detalhe da presciência do imaginário do autor, existem já vias reservadas a certos meios de transporte para evitar congestionamentos de trânsito (Verne, 1994: 43), o tecido desta cidade está pejado de hordas de uniformes transeuntes correndo apressadamente em todas as direcções. Paris é um caleidoscópio de ensurdecedores zurzires de veículos laborando dia e noite nas ruas em perpétuo movimento, de edifícios de escritórios das mais variadas actividades profissionais exercidas sob o primado do utilitarismo e do lucro, de sumptuosos estabelecimentos comerciais amplamente iluminados.

A Paris de 1960 sofre de carências habitacionais motivadas não só pela prevalência de interesses imobiliários privados (Verne, 1994: 75-76), cuja especulação obriga os mais humildes à migração para zonas mais periféricas da cidade (Verne, 1994: 92), bem como devido ao excesso de população. Algo que se pode confirmar por esta passagem do texto: “(…) arranjar casa mostrava-se então difícil numa capital demasiado pequena para os seus cinco milhões de habitantes” (Verne, 1994: 75).

E, claro, decorrente do progresso tecnológico e industrial associado ao sobrepovoamento urbano, a cidade vê-se igualmente perante outro fenómeno: a poluição (Verne, 1994: 76). Atente-se nas palavras que Verne coloca na boca de uma das personagens da sua obra:

(…) num espaço de dez léguas em redor de Paris, já nem há atmosfera! Tínhamos inveja do ambiente de Londres e, através das dez mil chaminés das fábricas, por causa do fabrico de produtos químicos, do guano artificial, dos fumos do carvão, dos gases deletérios e dos miasmas industriais, acabamos por criar uma atmosfera parecida com a do Reino Unido. (Verne, 1994: 129)

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