quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Jules Verne e a Cidade 4 - Paris, Agosto de 1960 2 (Paris no Século XX, 1994)

 

A Paris de 1960 tem o obsidiante aroma de distopia. Nela não haveria espaço para a vida boémia descrita por Henri Murger em 1849 ou para flâneurs pintores da vida moderna da estripe de um Baudelaire interpelando a alma encantadora das ruas. Esta cidade não é para dandies. Muito menos para poetas. Se nela habitasse, Rimbaud, perdedor magnífico na Paris do seu tempo, certamente ter-se-ia exilado muito mais cedo na Abissínia.

Quanto ao pulsar da vivência humana, é uma cidade cerceada pelas muralhas invisíveis do mais puro rigor matemático. Sem possibilidade de fuga ou de dissidência. Sem laivos de imaginação ou de ironia. E, sobretudo, sem humor. Não se exprimindo em sentido literal, mas ilustrando perfeitamente o espírito do tempo e da atmosfera daquela Paris, uma das personagens da obra de Verne afirma que “o riso é punido com a morte na nossa época, que é séria” (Verne, 1994: 71).

Numa sociedade em que se tornou despiciendo o estudo da história, e sem memória pela primazia que dá à actualidade do tempo presente obnubilando o passado (Verne, 1994: 33), visa-se encaminhar a existência humana para o primado da utilidade como via de sentido único e o sentido da vida explica-se através de engrenagens e de transmissões mecânicas (Verne, 1994: 47). Não é, pois, de espantar que o lema de vida do parisiense comum seja “(…) trabalhe no sentido de se tornar um homem prático!” (Verne, 1994: 50).

À semelhança de qualquer clássica ficção distópica, cada individuo é, ele próprio, um elemento que faz parte de uma engrenagem sociopolítica amplamente maior do que ele (Verne, 1994: 72), que o transforma num amorfo e acrítico analfabeto funcional (Verne, 1994: 28), incapaz de exercer livre e plenamente a sua autonomia enquanto ser social.

Esta cidade não ama a liberdade e dispensa de bom grado livres-pensadores. Libertinos como o Visconde de Valmont (um dos personagens principais da clássica obra de Laclos, As Ligações Perigosas) não sobreviveriam nela. A Paris imaginária de 1960 é a antítese da Paris revolucionária de 1789 ou 1871. Qualquer convite ao inconformismo ou à diletante perturbação dos valores instituídos são prontamente aniquilados pela hegemonia da racionalidade tecnoeconómica e tecnocientífica vigente, fazendo da cidade não a capital do século dezanove, mas sim a capital da normalização dos instintos e pulsões do humano.

Atente-se na forma como a cidade administra a sua política cultural. E como a conforma ao incentivo da ascensão da insignificância e da mediocridade. Nesta Paris, a criação autoral de peças de teatro deixou de ser feita por autores independentes para ficar sob a alçada de uma instituição estatal designada como Grande Círculo Dramático que tem a seu cargo a última palavra sobre que peças devem ser ou não apresentadas ao público.

Esta passagem ilustra perfeitamente as directrizes culturais de um paradigma sociopolítico assente numa racionalidade tecnocientífica e tecnoeconómica levadas ao extremo:

Mas se o Grande Círculo não produzia grandes obras, pelo menos divertia o público mais dócil com diversas obras inofensivas; deixou-se assim de representar os autores antigos e apenas por vezes, como excepção, é que Molière era representado no Palais Royal, por entre canções e pantominas dos senhores comediantes; mas Hugo, Dumas, Ronsard (…) estavam eliminados em massa (Verne, 1994: 140).

A Paris de 1960 não se compadece com a originalidade. É ingrata para com a espontaneidade da criação artística. A figura do autor assemelha-se inteiramente à do cidadão parisiense comum: docilmente amestrado pelo espartilho do conformismo. Na voz de um dos funcionários (que, por decisão política, substituíram os autores na criação de peças) do Grande Círculo: “(…) não temos que criar nada; aqui dentro, sabe, a personalidade deve desaparecer, tem de se enquadrar num vasto conjunto de obras medianas” (Verne, 1994: 141).

Deparamo-nos com a mesma paisagem árida em todas as actividades que não possuam um cariz tecnológico ou industrial e não apontem ao primado da prática e da utilidade. A Paris de Verne, tecnocientífica e tecnoeconómica, coloniza de tal forma todas as esferas de pensamento e de acção na esfera pública que, tendo a política se tornado numa mera forma de legitimar as decisões tomadas pela aliança economia/indústria, a existência de jornais é algo de verdadeiramente supérfluo e antiquado. Como corolário disso, a imprensa e o jornalismo são algo do passado e a censura estatal deixou de ser necessária (Verne, 1994: 136).

Assim como a poesia que, incapaz de procurar a sua inspiração temática no divino, no humano ou na natureza, celebra agora apenas, como é socialmente aconselhável e comercialmente a única via de se ser bem-sucedido na arte das musas, os grandes feitos tecnológicos e industriais (Verne, 1994: 52).

A razia produzida pela higienização paradigmática da racionalidade tecnocientífica e tecnoeconómica é tal que, naquele sombrio início de década de 1960 nos círculos de poder a ela afectos, relativamente à reorganização dos currículos universitários, “Corre o boato de que as cadeiras de letras, em virtude de uma decisão tomada na assembleia geral de accionistas, serão suprimidas no ano lectivo de 1962” (Verne, 1994: 108).

E porque não conduzir as humanidades à sua extinção se, à semelhança do que acontece no teatro em que os grandes autores foram condenados ao exílio pela espuma normalizadora dos dias e pela banalidade do tempo de uma época que cortou o cordão umbilical com o passado, a Compilação dos Problemas Eléctricos ou o Tratado Prático de Lubrificação das Rodas Motrizes e outras obras do género (Verne, 1994: 52) expulsaram definitivamente toda e qualquer obra de literatura, ensaio ou poesia das estantes das livrarias e bibliotecas públicas e privadas?

Em Paris, no ano da graça de 1960, dá-se por completo a aniquilação da cultura humanística e do livro enquanto objecto de cultura, ao ponto de qualquer autor de literatura, poesia, teatro ou ensaio do século anterior ser absolutamente desconhecido, figura de um passado arcaico e pré-industrial que não merece celebração ou evocação, incapaz de ser encontrado numa livraria.

A prodigiosa imaginação de Verne, como veremos no post seguinte, não andou, de todo, muito longe da realidade.

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