Outubro de 1959, Ano I, n.º 2, págs. 3 e 4
O túmulo de Júlio Verne, no cemitério de Amiens, figura o escritor, de
torso nu e com a mortalha pelas costas, soerguendo a pesada laje tumular e
emergindo do coval com o braço estendido para o alto, os olhos postos no porvir
e a atenção suspensa da alvorada que rompe...
Ora, há tempos, o guarda do cemitério comunicou às autoridades que a
escultura desaparecera, restando dela a laje e a mortalha. O roubo atingira
também o próprio guarda, de cuja casa (sita à entrada do cemitério) haviam
desaparecido o fato domingueiro e várias peças de vestuário e calçado. Causou o
atentado indignação e fizeram-se aturadas investigações de que, infelizmente,
nada resultou. Mas o que mais intrigou os detectives e os peritos foi a circunstância
de não haver vestígios de rotura violenta na mortalha e na laje do conjunto
escultórico, não obstante este ter sido talhado num único bloco de pedra.
Já o incidente esquecia, quando uma manhã o guarda notou que a laje fora
descida sobre o coval, tapando-o. Interrogou os serventes, mas todos negaram
que lhe houvessem mexido. E qual não foi o seu espanto, soerguida a laje, ao
verificar que sob ela jazia a estátua de Júlio Verne, envolta na mortalha, a
qual guardava entre os braços, descaídos ao longo do corpo, um pequeno
manuscrito! Inexplicavelmente, a mortalha estava de novo ligada ao corpo, os
olhos fechados, a expressão taciturna e envelhecida...
Dividiram-se os peritos. Segundo uns, a escultura nada tinha a ver com a
primitiva, pois fora talhada em pedra diversa da da laje; segundo outros, o
manuscrito era, sem qualquer dúvida, do próprio punho de Júlio Verne... Mas o
que mais inquietou o guarda foi encontrar, aos pés do coval, as peças de
vestuário roubadas, com evidentes sinais de prolongado uso.
Não sabemos em que ponto estarão, neste momento, as investigações. Não é,
aliás, o aspecto policial que aqui nos ocupa, mas o interesse do inédito
(apócrifo ou não) que passamos a transcrever:
Meus Caros Leitores:
A minha obra ficaria incompleta se, em apêndice à Viagem ao Centro da Terra,
não houvesse o breve Regresso à Superfície da Terra que hoje venho dar-vos. Foi
para o escrever que abandonei, transitoriamente, o formoso túmulo em que me
inumaram, e, envergando as roupas do guarda deste cemitério (a quem lego, a
título de indemnização, os direitos desta carta), fiz uma peregrinação pelo
mundo. Tudo vi. E bem escuso descrever-vos as novidades que encontrei, pois
sobejamente as conheceis.
O meu propósito é outro. À semelhança do que os tártaros fizeram a Miguel
Strogoff, momentos antes de lhe chegarem aos olhos a lâmina incandescente,
quero gritar-vos: Abri os olhos! Abri-os bem, pois estais, como ele, em riscos
de cegueira!
Em breve sabereis que há vida na Lua. Quando? Na noite de lua-nova em que
fizerdes explodir no espaço, qual gigantesco very light, uma das vossas bombas
termo-nucleares. Então vereis os segredos da face desconhecida da Lua que, pelo
facto da velocidade de rotação desse satélite ser igual à de translação, tem
estado, desde o princípio dos tempos, mergulhada em sombra para os habitantes
da Terra. E conhecereis que miríades de estranhos seres habitam essa face,
deslocando-se, sem parança, no sentido do poente, logo que a luz do Sol se
avizinha do horizonte do ponto em que estão. Porquê?
Porque a pequena massa da Lua, a natureza do seu solo, a sua menor
superfície em relação à Terra, bem assim como a maior proximidade do Sol a que
se encontra uma parte da órbita que descreve tornam a vida incompatível com a
temperatura que atinge o solo da face iluminada. Daí que toda uma legião de
seres, anaeróbios mas corpulentos, corra incessantemente atrás da sombra. E,
porque a velocidade de rotação e translação da Lua é suficientemente pequena
para o permitir, assim vão vivendo numa sucessão de pequenos altos em que se
nutrem dos fungos e cogumelos que cobrem as paredes das inúmeras cavernas e
galerias de que a Lua — gigantesca pedra-pomes — está minada, e em que
descansam, se reproduzem e enterram (ou enluam) os mortos, — autênticos caixeiros-viajantes
da vida que são.
Mas vós, meus queridos leitores, fazeis hoje, mentalmente, o mesmo! Pois
que é a vossa vida senão uma corrida sem tréguas na peugada da sombra que a
sinistra bola de fogo das explosões atómicas projecta a milhares de quilómetros
de distância? Todos viveis na insegurança da noite em que poderá raiar,
subitamente, o clarão sinistro da fissuração dos átomos. Essa admirável
conquista da ciência, que o meu Nemo anteviu, e que tão amplas perspectivas de
futuro poderia rasgar aos vossos olhos — não apontei há pouco senão uma das
mais ínfimas! — tornou-se um pesadelo. Por isso recolhi ao túmulo, angustiado.
E só consentirei em reassumir a posição, face à posteridade, que a vossa
gentileza me talhara no mármore, no dia em que tiverdes conjurado a ameaça que
paira sobre a Humanidade, eliminado o perigo duma guerra!
Amarguradamente vosso,
a) Júlio Verne
* Médico, escritor neorrealista e ensaísta, Sacramento destacou-se igualmente como opositor político do Estado Novo.