quinta-feira, 16 de julho de 2009

Júlio Verne em Crotoy (1869-1871) - 4ª Parte

Continuação do artigo 'J. Verne - Um precursor da ficção científica' cuja 3ª parte foi aqui colocada no dia 14 de Julho.

Júlio Verne em Crotoy (1869-1871)

Depois de mudar-se dos grandes bulevares e dos teatros para o bairro de Auteuil, em 1863, Júlio Verne deixou definitivamente Paris em meados de março de 1869. Com a idade de 41 anos, instalou-se na região de Amiens onde sua esposa Honorine voltou a conviver com os parentes. No curso dos anos que precederam essa mudança, toda a família passou as férias no pequeno porto de pesca de Crotoy, na margem norte da baía de Somme. Jules Verne alugou neste ano, na Rua Lefèvre, próximo ao porto, uma casa de um andar - La Solitude - com uma pequena dependência na qual fez o seu escritório.

Em Crotoy, Júlio Verne redescobriu a sua paixão pelo mar, não pelo mar distante que fascinou a sua infância, mas aquele que entraria na sua vida e em seus escritos. Picardia, ao mesmo tempo em que sua carreira literária se estabelecia em modo definitivo iniciam-se as suas grandes aventuras marítimas. Adquiriu o seu primeiro iate de 8 a 10 toneladas que batizou com o prenome do seu filho, Saint-Michel.

O mar se tornou a sua verdadeira fonte inspiradora no que permanecerá durante cerca de 20 anos. Em seu iate, Jules Verne tomou notas, pensou no infinito das grandes aventuras humanas. Reconstituiu a sua energia, sonhou com a liberdade, e redigiu o que permanecerá como um dos seus maiores romances, Vingt mille lieues sous les mers (Vinte mil léguas submarinas, 1869-1870). Este romance foi concebido desde 1866 por ocasião de umas férias de verão na casa dos seus pais em Chantenay. Ele começou a sua redação no início de 1868 e terminou em junho de 1869. Ele escreveu no seu iate, deixando o texto de lado para escrever Autour de la Lune (Ao redor da Lua), retomando as vinte mil léguas mais tarde. Foram necessários cinco anos para concluir o seu romance e criar um dos mais notáveis personagens verniano: o capitão Nemo.

Nemo é um herói feito de paradoxo, onde coabita um egoísmo cego com a rejeição total do interesse pessoal. Como Hatteras, sua obra constitui um sonho apaixonado, preocupado em conquistar um conhecimento útil ao bem coletivo. Na realidade, é a imagem do autor: Nemo é introvertido e um grande pensador. Homem de ação, Nemo constitui por seu imenso ideal pouco comum um aventureiro diferente de todos. Esses dois heróis de Jules Verne se parecem por sua audácia, temeridade, convicção racional e obstinada.

Enquanto o capitão conduziu a sua energia super-humana para a loucura, o capitão Nemo permaneceu prudentemente como se houvesse conservado a lição do predecessor. Procurou livremente o universo que lhe é permitido descobrir - um território infinito que ele insere nos seus conhecimentos - para uma epopeia inédita, estimulada por uma razão direcionada para o combate entre o bem e o mal. É, na realidade, um terrorista pacifista.

Esse personagem é uma síntese do homem do seu tempo, cujas novas formas morais estavam em construção. É um homem que aspira a uma sociedade de cidadãos responsáveis pela razão, mas cuja razão é ainda precária e frágil. A correspondência entre Verne e o seu editor Hetzel, a propósito de Nemo, permite detetar um desacordo entre esses dois que ultrapassa o problema dramatúrgico. Na realidade, as ideias de Verne e Hetzel convergem em matéria moral. Os dois estão igualmente convencidos que a humanidade deve caminhar para uma sociedade mais lúcida e mais justa.

Mas, nesses pontos comuns, a aplicação dos conceitos morais tende a seguir uma divergência. A ciência sobre a visão de Hetzel é a moral positivista de Augusto Comte, que sucede a moral teológica e metafísica. Jules Verne aceita essa evolução; no entanto, não quer opor esses dois conceitos radicalmente. Essa distinção permite melhor compreender as discussões que separam esses dois homens. Na verdade, Verne ultrapassa o pensamento moralista do seu editor. Nemo é o maior personagem concebido por Jules Verne. Segundo o escritor francês Jean-Paul Dekiss, Nemo constituiu o retorno de Prometeu que o escritor antecipou de 20 anos ao de Nietzsche em Assim falou Zaratustra.

Seu gosto pelo jogo etimológico das palavras, estimulou Verne a dar a Nemo um duplo sentido. Literalmente o vocábulo latino Nemo significa ninguém, que não vem de nenhuma parte, sem objetivo pessoal, fora da sociedade civilizada que ele rejeitava, e aparentemente não possuiu nenhuma identidade particular. Na realidade, Nemo se funde na água e se dissolve na totalidade do mar do globo. Nemo é portanto um personagem humano, irredutível no seu desejo de independência. Aliás, na sua fortaleza submarina, tudo possuía a marca desta independência: o capitão Nemo tinha como lema do Nautilus a expressão latina Mobilis in Mobili, ou seja, móvel num elemento móvel. Nemo era totalmente livre, era e é ainda a personificação do ser humano, mestre de si e do seu destino. Essa exposição mais longa sobre o personagem Nemo se justifica pela associação que se pode fazer entre o escritor e seu personagem, a quem Jules Verne dedicou dois volumosos romances. Depois das Vinte mil léguas, Nemo retorna na L'Île mystérieuse (A Ilha misteriosa, 1874-75).

BREVE CRONOLOGIA EM CROTOY (1869-1871)

1869-70: Publicou no Magasin: Vingt mille lieues sous les mers (Vinte mil léguas submarinas). No periódico Le Débats, Autour de la Lune. Deixou Paris por Le Crotoy. Michel é enviado a uma pensão em Abbeville.

1870 : No periódico Débats: Une ville Flottante. Com Hetzel: Découverte de la Terre. Durante a guerra, Jules Verne colaborou como guarda-costa em Crotoy: Honorine, Michel, Valentine e Suzanne partiram para residir em Amiens. Foi nomeado cavaleiro da Légion d'Honneur.

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