quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Entrevista de De Amicis a J. Verne em 1897

Uma Visita a Júlio Verne

por

Edmondo De Amicis

Entrevista publicada na revista Nuova Antologia em março de 1897

Freqüentemente citada, esta entrevista surgiu pela primeira vez em Nuova Antologia, em primeiro de novembro de 1896. Depois foi reproduzida em Memorie de De Amicis (Milão, Fratelli Treves, 1900). A visita teve lugar em 20 de outubro de 1895. De Amicis estava acompanhado de seus filhos. Ainda que esse relato fale pouco sobre Verne, De Amicis faz uma interessante descrição do autor, assim como de sua esposa.


Edmondo De Amicis
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Encontramos Júlio Verne em Amiens, aonde permanece durante todo o ano, a duas horas e meia de Paris, por trem. Uma carta escrita por ele a meu bom amigo Caponi me assegurava que seu recebimento seria mais que amável, e essa certeza avivou ainda mais meu velho desejo, e de meus filhos que estavam comigo, de conhecer pessoalmente o amado e admirado autor das Viagens Extraordinárias. Nunca havíamos visto uma fotografia dele e, por conseguinte, era completamente desconhecido para nós, a não ser pelos seus livros. No caminho comentamos o curioso fato de que os leitores deste escritor francês tão celebrado, e que ainda vive, tenham tão pouca informação sobre ele, enquanto que de todos os demais escritores se conhece, com detalhe e abundância, sobre suas personalidades e suas vidas, tal como conhecemos as dos reis e dos imperadores. Este mistério aumentava nossa curiosidade.

Chegamos à porta de uma casa particular, situada na entrada de uma rua deserta de um bairro residencial que parecia deserto. Uma mulher nos abriu a porta e nos fez cruzar um pequeno jardim para depois entrarmos numa sala, no térreo, que estava cheia de luz. De repente, Júlio Verne surgiu, recebendo-nos com o rosto sorridente e os braços abertos.

Se eu o tivesse conhecido sem saber quem era, e me perguntassem qual sua profissão, teria dito que se tratava de um general condecorado do exército, ou de um professor de Física ou Matemática, ou quem sabe um chefe de gabinete de um ministério – mas nunca um artista. Não aparenta seus quase oitenta anos(1), é da estatura de Giuseppe Verdi, com um rosto sério e amável, porém sem a vivacidade característica de um artista, nem no olhar, nem na palavra; seus modos são muito simples, imprimindo uma grande sinceridade em cada um de seus gestos, mesmo os mais fugazes de sentimento ou de pensamento; a fala, o porte, a maneira de se vestir, são as de um homem que considera as aparências algo que absolutamente não se deve levar em conta. Minha primeira sensação, depois do prazer em vê-lo, foi de estupefação. Fora o olhar amistoso e o comportamento afável, nada podia reconhecer em comum do Verne que estava de pé diante de mim com aquele que eu havia imaginado. Voltaram à minha mente as palavras de um amigo de Turim, que um dia me disse, meio de brincadeira, meio sério: “Você vai conhecer Júlio Verne? Mas... Júlio Verne não existe! Você não sabe que as Viagens Extraordinárias são feitas por uma sociedade de escritores que tomaram esse nome como pseudônimo coletivo?”

Minha surpresa aumentou quando, induzido a falar sobre suas obras, comentou-as com ar distraído, como se o fizesse de textos escritos por outra pessoa, ou melhor, de coisas nas quais não via mérito algum, de uma coleção de selos ou moedas que havia adquirido e da qual se ocupava mais pela necessidade de fazer algo do que por pura paixão pela arte. Várias vezes, no início, tentou fazer a conversa girar sobre outro alguém, e não tendo êxito nisso, a fez recair amavelmente sobre seus dois jovens visitantes. Porém, uma pergunta direta o forçou a falar sobre seu modo de conceber e escrever um romance, e o fez em poucas palavras, com grande simplicidade e admirável clareza.

Contrariamente ao que eu havia pensado, a primeira coisa que faz não é imaginar seus personagens, nem os fatos que ocorrerão na história que está por escrever, para depois realizar as pesquisas sobre o país que será o cenário dela. Em vez disso, Verne primeiro lê sobre a história e a geografia dos países, como se tivesse como única intenção nada mais do que descrevê-los total e minuciosamente. Seus personagens e os principais acontecimentos da narrativa vão tomando forma em sua mente durante a leitura, na qual não avança com a curiosidade fixa e o frenesi de um caçador de notas que serviriam para outra coisa, mas com o amor e o prazer de um apaixonado por esse tipo de estudo. Quanto aos conhecimentos variados que necessita e que em seus livros são abundantes, tanto em Física, Química, Astronomia e História Natural, há muito que não precisa buscá-los nas obras científicas que foram suas leituras favoritas desde a mais terna idade, seja porque os tem de memória ou por facilmente encontrá-los em uma enorme quantidade de notas que atualiza em livros, revistas e periódicos, sem descuidar daquelas referentes às viagens, descobrimentos, fenômenos, acontecimentos ou personagens singulares que pense que possa utilizar de uma maneira ou de outra em alguns de seus futuros trabalhos.


J. Verne em 1896. 68 anos.

Com respeito à escolha dos países que servirão de cenário para suas novelas, Verne se guia por uma idéia que está muito distante da que imaginei. Sua intenção é a de descrever a Terra inteira, por isso vai de região em região, segundo uma ordem pré-determinada, jamais voltando sobre seus passos, a menos que seja necessário e, mesmo assim, da forma mais breve possível. Todavia, ainda lhe faltam muitas partes do mundo para cobrir, e ele já estimou o número de histórias que deverá criar para conseguir seu objetivo: “Terei tempo para todas elas?”, perguntou-se, sorrindo. Assim ele espera, da mesma forma que nós, e enquanto isso, não perde um só dia. Escreve regularmente dois romances por ano, mas só entrega um deles para impressão, de tal forma que não se juntem, visando ter sempre alguns guardados na gaveta(2). Deita-se para dormir todas as noites por volta das oito. Levanta-se as quatro da manhã e trabalha até o meio-dia. Esta é sua rotina de vida, exceto quando viaja, e assim continuará fazendo até quando puder. “Necessito trabalhar” - concluiu – “O trabalho transformou-se em uma função vital para mim. Se não trabalho, não me sinto vivo.”

Nesse momento, tivemos uma surpresa agradável: surgiu a senhora Verne. Imagine uma moldura de cabelos brancos sobre uma face redonda e rosada, dois grandes olhos claros sempre sorridentes, uma boca cheia de bondade e de doçura e terás o rascunho de um retrato. À singeleza do marido, agrega a vivacidade e a graça, à sua franca cordialidade, uma ingenuidade em palavras e em espírito; perceba os ligeiros sinais impressos sobre sua face ainda florescente como sendo a obra do pincel de um miniaturista para enganar o mundo, e eis aqui o retrato completo. Falou-me da Itália, recordando a entusiasmada recepção que deram a seu marido, particularmente em Veneza. “O senhor teve conhecimento?” – me disse – “que iluminaram a fachada do hotel e escreveram seu nome por baixo da varanda com lanternas?” Contou-me então a história de um homem que havia encontrado Verne em Nápoles – e que depois se soube ser um arquiduque da Áustria – para expressar-lhe sua admiração sem dizer-lhe que havia enviado, desde Viena, uma de suas conhecidas obras históricas(3). Disse isso com uma ponta de satisfação e surpresa, como se fosse a esposa de um escritor que apenas emergia das sombras, demonstrando um prazer inesperado devido ao renome de seu marido.


Honorine Verne

Verne dá provas desse mesmo desconhecimento de sua própria celebridade quando me pergunta: “Sabia que meus livros são traduzidos em diversos idiomas?” Sua esposa também me faz saber que ele é, já há muitos anos, conselheiro municipal de Amiens e que desempenha essa tarefa com muita dedicação(4). E Verne retornou a esse tema em diversas ocasiões, quase que querendo mostrar que falava mais à vontade de administração do que de literatura. Além disso, a senhora Verne duvidou que seria reeleito nas próximas eleições. E quando lhe perguntei, assombrado, a razão pela qual duvidava, respondeu em voz baixa, tornando-se grave: “A maré democrática, caro senhor, sobe, sobe por todos os lados”. Depois, ambos me descreveram a perfeita tranqüilidade de sua vida provinciana, que acabou de transformar por completo suas almas. Basta mencionar que nenhum dos dois vai a Paris há mais de oito anos. Sua maior distração é ir ao teatro ou à ópera duas vezes por semana, e nessas tardes extraordinárias, para que a festa se complete, jantam juntos num hotel localizado em frente ao teatro como se fossem dois jovens casados em viagem de lua-de-mel. As caminhadas de lazer, as poucas visitas, a leitura, o trabalho em casa e o trabalho literário se fazem todos à hora precisa, como se seguissem um regulamento. Quem pensaria, por um só momento, que assim vivia o homem que havia imaginado tantas coisas maravilhosas e, principalmente, tantos personagens fascinados pela vida desordenada e cheia de agitação, deslocando-se de país em país como as andorinhas em busca de feitos imprevistos e de fortes emoções?

Mas, para conhecer melhor a bondade e a simplicidade que os caracterizam, e para dar uma boa idéia de sua vida calma e pacata, onde o menor detalhe se converte em objeto de curiosidade e de controvérsias, é necessário invocar um episódio muito encantador de nossa conversação que daria um excelente efeito em uma comédia, como nota descritiva de “ambiente”.

Logo depois de haver-me censurado gentilmente por não tê-los acompanhado no pequeno almoço, perguntaram-me em que restaurante havia ido. Eu não recordava seu nome, nem tampouco o da rua onde está.
- Vejamos... Que rua seguiu ao sair da estação ferroviária? - Desci tal rua, cheguei a um lugar, depois virei à esquerda. Então, enumeraram-me uma série de nomes de restaurantes, descrevendo suas localizações, entradas e particularidades. Mas nenhum correspondia ao meu. - Mas deve ser um deles... Afinal, qual é? E discutiram entre eles: podia ser um, podia ser um outro; quem sabe, eu havia esquecido algum indício importante? - Está seguro de ter virado à esquerda? - Absolutamente. - E quanto tempo havia caminhado antes? Respondi e começaram novamente seu raciocínio. - Há, em frente ao lugar, uma farmácia como essa ou como aquela? - Disse que havia estado em um grande salão no térreo do restaurante? - Sim.
Mas era inútil, os outros detalhes não coincidiam. Perdiam-se. Torturavam suas mentes como se estivessem diante de um enigma. Queriam encontrar a resposta a qualquer preço. Quem sabe não estávamos partindo do mesmo ponto?
- Mas, lembra-se de alguma particularidade deste lugar de onde partiu? Assim continuou a conversa, sem resultado, algo que visivelmente lamentavam. - Bem, pelo menos – disse Verne – se o visse de novo, o reconheceria? - Sem dúvida. - Bem, então nos indicará qual deles foi. - E assim – concluiu sua esposa – o mistério será esclarecido.

Mas tudo aquilo foi dito com uma bondade que não saberia descrever. Poderia se dizer que se tratava de um pai e uma mãe perguntando a seu filho todos os detalhes de sua primeira viagem para reviver com ele todos os momentos passados em terras longínquas. Um mês de vida em comum com eles não me faria penetrar tanto em seus corações, nem teria me unido tão afetuosamente aos dois quanto aquela conversa que eu ouvia sorrindo, com os lábios, entretanto, contraídos pela emoção.

Verne quis que conhecêssemos toda a casa. Subimos ao primeiro andar(5). Por todas as partes reinava uma elegância simples e austera. Não se encontrava em nenhuma parte o luxo em que poderia viver o autor das Viagens Extraordinárias ao qual somente os direitos autorais das obras teatrais baseadas em três de seus livros haviam garantido uma grande fortuna. Seu estúdio era um cômodo singular, pois está destinado ao mesmo tempo ao trabalho e ao descanso, e é muito pequeno, uma espécie de cabine de comandante de navio. Em um canto, de frente a uma grande janela, há uma grande mesa de trabalho coberta por uma toalha verde, coberta de livros e mapas ordenados simetricamente. No canto oposto, um pequeno leito, estreito e muito baixo, sem adornos, que pareceria modesto a um estudante. É sobre essa espécie de cama militar que dorme Júlio Verne, não sei desde quando, deitando-se pouco depois do pôr do sol até as primeiras horas do dia seguinte, tanto no inverno quanto no verão. O quarto, cheio de luz solar, e desde onde se vêem as torres da famosa catedral, dá para um largo e solitário corredor. Observei com muita curiosidade alguns dos manuscritos que estavam sobre a mesa. Haviam folhas cobertas com linhas densas, escritas com letras pequenas, porém firmes e regulares, com muitas poucas correções. Depois de ter trabalhado com cuidado na preparação de seu texto e de haver pensado nele durante muito tempo, escreve-o rapidamente. Logo, a senhora Verne me retém por algum tempo enquanto meus filhos entram com Verne em sua biblioteca, aproveitando a ocasião para fazer-me em voz baixa, de uma forma cândida e amigável, uma súplica que me comoveu: “Trate um pouco, senhor, de persuadir meu marido a zelar mais por sua saúde. Ele trabalha demais. Sempre está ali, ali em sua mesa. Rezo para que não adoeça. Não vivo tranqüila.” E soube por ela que a saúde de Verne havia se ressentido um pouco, alguns anos antes, por um triste incidente que eu ignorava: um de seus sobrinhos, com problemas mentais, o havia atacado sem razão e feriu-lhe a perna com um disparo de arma de fogo, pelo qual permaneceu enfermo durante muito tempo. Foi depois deste acidente que ele vendeu o elegante iate com o qual havia viajado à Itália, ponderando que a necessidade de uma vida sem fadiga não lhe permitiria fazer novas viagens pelo mar(6).


Desenho de Verne com o seu chapéu preto

No quarto claro e espaçoso que limita com o estúdio há uma rica coleção de livros de viagens, de ciências e mapas. Em uma seção estão ordenadas as traduções das obras de Verne, centenas de volumes de todos os tamanhos e formas, e em muitos idiomas, entre eles o árabe e o japonês, ainda que não houvessem traduções européias. Depois, nos conduziu à outra biblioteca, que contêm todas as suas obras em francês. “Oitenta volumes!” – disse sorrindo e sacudindo a cabeça como se dissesse “oitenta anos!”. Estavam dispostos em ordem cronológica e ocupavam uma grande estante, formando uma franja multicolorida, luminosa e gloriosa como uma série de bandeiras.

Quantas recordações voltaram a mim ao ver todos aqueles livros, lidos com tanto prazer em minha infância e juventude, e aos quais retornei tantas vezes já como adulto, para relaxar ou aclarar a mente! Quantas lembranças queridas, projetos de viagens, grandes e estranhos sonhos que sobrevinham depois de minhas leituras, visões imensas de florestas, desertos e oceanos, misteriosas solidões interplanetárias e espantosos abismos marinhos e terrestres, cataclismos maravilhosos e formidáveis! Simultaneamente ressoaram em minha mente os nomes de Nemo, Hatteras, Fogg, Grant, Strogoff, Robur, Kurtis, de personagens misteriosos e terríveis, de inventores de máquinas prodigiosas, dos descobridores de mundos desconhecidos, vítimas e heróis de gigantescas lutas com a natureza, e vi por trás deles as figuras extravagantes, os tipos cômicos, singulares, engenhosos e divertidos de todos os países, de Ardán a Paganel, de Keraban a Passepartout e ao filósofo chinês das Atribulações, que me haviam arrancado muitas gargalhadas quando jovem e depois a inumerável multidão de personagens secundários de todas as condições e de todas as raças, todos marcados com uma pincelada de cores suaves, todos levados pelas rotas da terra, do mar e do céu, às entranhas do globo, às profundidades submarinas e aos espaços etéreos, através de milhares de aventuras trágicas, fantásticas e maravilhosas, sempre com um final feliz. Tudo escrito em um estilo simples e prazeroso, colorido com um ligeiro toque de poesia que deixa ao espírito uma impressão sã da vida, um desejo de atividade física e intelectual, uma cobiça de estudar a natureza e entusiasmar-se pela Ciência combativa e determinada, e uma visão grandiosa e reconfortante dos destinos do Homem.

E novamente me surpreendeu que todas essas minhas recordações haviam sido criadas na mente deste homem tão calmo e despretensioso, de vida comedida e fala tranqüila, e me maravilhava com a extraordinária popularidade de seus oitenta volumes difundidos pelo mundo inteiro, dessas centenas de criaturas saídas de sua imaginação e gravadas em milhões de mentes como se fossem pessoas vivas e familiares. A simplicidade com que respondeu à expressão desse meu pensamento pareceu-me ainda mais admirável e simpática: “Mas veja assim, esta enorme difusão se deve, em grande parte, ao fato de que em meu trabalho sempre propus como meta, ainda que em sacrifício da Arte, a de jamais deixar escapar uma só página ou uma única frase que não pudesse ser lida pelos jovens, para quem escrevo e a quem amo”.

Pedi uma fotografia sua, sobre a qual ele assinou, como diria meu amigo de Turim, o pseudônimo da sociedade coletiva que escrevia suas obras. Sua esposa comentou que ele havia esquecido a data e pedi, então, que ela assinasse também, para que eu pudesse ter seu autógrafo. Ela sorriu sem entender se eu estava falando sério, mas finalmente se animou a escrever, não deixando de sorrir. Saímos então de casa, todos juntos, e a partir daquele momento Júlio Verne era simplesmente o conselheiro municipal da cidade de Amiens. Depois de visitarmos um centro eqüestre de propriedade municipal, próximo a sua casa, e onde tem lugar reuniões e festas públicas, deu-me muitos detalhes sobre os trabalhos de construção, as escolas e a demografia da cidade e me fez perguntas sobre as administrações municipais na Itália. Nesse momento, pareceu-me que a sensação de que falava com um conselheiro de Turim, de férias na cidade, lhe dava prazer, a tal ponto, que tratei logo de dizer-lhe que minhas férias eram perpétuas. Dirigimo-nos, então, ao centro da cidade. Como era domingo, encontramos muita gente. A senhora Verne se detinha, por vezes, para trocar algumas palavras com pessoas que conhecia, e que se surpreendiam por vê-la fora de casa em hora inusitada; ela ria com a alegria de uma pessoa de saúde excepcional e logo corria para unir-se a nós. E quando se encontrava a meu lado voltava a sua pergunta anterior e falava das raras qualidades do coração de seu marido, insistindo, como se duvidasse de que já estivesse persuadido: “Se soubesse como Júlio é bom e generoso”. “Eu sei” – lhe respondi – “e creio que todo mundo saiba”. De fato, adultos e crianças de todas as condições que cruzavam conosco o saudavam respeitosamente, ainda que pudesse haver entre eles mais de um eleitor que, ao cumprimentá-lo, fizesse mentalmente a distinção entre o escritor e o conselheiro municipal. Fomos á prefeitura – já havíamos visto a Catedral – e lá, Verne nos fez visitar a galeria de arte(7) onde, como bom conselheiro, tomou nota de uma observação que fiz a propósito de uma dúvida minha sobre um verso de Dante inscrito embaixo de uma bela pintura moderna. Depois, conduziu-nos ao salão de debates e nos contou a história do prédio, acompanhada de numerosos detalhes administrativos e políticos. Enfim, quando saímos, ambos disseram, quase ao mesmo tempo e com ares de quem acabou de lembrar uma curiosidade ainda insatisfeita: “Agora, só falta vermos aquele misterioso restaurante”. E partimos em viagem de exploração.

No instante em que me detive no meio de uma rua, anunciando “É aqui!”, olharam-se com surpresa. “Ora, ora... Mas esse é o primeiro restaurante que mencionamos!” – me disseram – “Bem se vê que ainda não conhece o lugar. Finalmente o encontramos, o problema está resolvido”.

Agora só falta comemorarmos a descoberta” – acrescentou Verne, e quis entrar para beber uma cerveja. Mas só tomou um gole, conforme sua regra; já sua esposa bebeu um bom copo, falando e gracejando com a jovialidade de uma menina. “Sabe que fazem uns quatro ou cinco anos que não venho ao café?” – me disse ela. “Aqui as mulheres não têm o hábito de vir. Isso é um acontecimento para mim...” E por estar sentada junto a uma grande janela que dava para a rua, em algumas ocasiões, quando alguém passava pela calçada e a reconhecia, manifestava sua surpresa e tirava o chapéu para saudá-la, que ria e dizia ao marido: “Fulano passou, e também beltrano. Surpreendeu-se ao ver-me no café!” E Verne parecia divertir-se com a vivacidade de sua mulher, ainda que não tenha feito um só gracejo nem expressão de hilaridade – apenas um sorriso breve e amistoso – nem demonstrado a veia cômica que flui tão bem em seus livros. Porém, sua pessoa aparecia melhor nessa gentileza sem artifícios, toda em seu olhar e em sua voz, e nessa benevolência que ele escondia, mas que eu tratava de imaginar! E fiquei olhando os dois, e a meu pensamento veio uma impressão que ocorre a todos, essa de reviver nesse momento, sem que nada haja mudado, um instante de um tempo passado. Pareceu-me (e foi uma ilusão tão viva que senti-me estupefato) haver estado alguma outra vez em Amiens, ter vindo anteriormente a esse café com Júlio Verne e sua esposa, e tê-los conhecido em pessoa já há muitos anos, e ter vivido durante muito tempo nessa aprazível casa em sua doce e grata companhia, como um velho amigo que nada mais tem a conhecer de seu coração e de sua vida.

E, sob as marquises da estação até onde tiveram a gentileza de acompanhar-nos, lhes disse com quanta emoção os deixava, e que guardaria uma inesquecível lembrança daquele dia, e lhes disse isso com aquela entonação que a eloqüência não encontra, pois vi umedecer seus bondosos e sorridentes olhos, e meus filhos e eu sentimos em seu abraço tudo aquilo que pusemos nos nossos. E essas duas imagens se mantiveram presentes até que as mil luzes e o alvoroço da estação do Norte nos despertaram como de um belo sonho.

ANEXO
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1- No momento da entrevista, Verne contava 67 anos.
2- A gaveta da mesinha é, com efeito, o local onde Verne deixava os romances escritos antes de começar a revisá-los. Comentou com Hetzel sobre esse fato em muitas ocasiões, como por exemplo, em 29 de dezembro de 1894, numa carta em que lhe diz: “Acabo de terminar um de meus romances de 98! Bem, acabado, não, porque ainda terei alguns meses de trabalho. Mas o deixarei repousando, pelo menos, por seis meses”.Em 1895, o autor tem uma vantagem de três a quatro anos sobre seu contrato.
3- A viagem à Itália ocorreu em 1884 e é em Nápoles que Verne se encontra com o arquiduque Louis-Salvator de Habsbourg. Sua obra sobre as ilhas Baleares será citada em Clóvis Dardentor (1896). Seu irmão, Jean-Salvator, renunciou a seus títulos em 1889, depois do drama de Mayerling e abandonou a Áustria sob o nome de Jean Orth. Desapareceu num naufrágio em agosto de 1890, nos arrecifes do cabo Horn. Seu curioso destino é, sem dúvida, a origem do personagem Kaw-Djer em En Magallanie, que Verne elabora entre 1890 e 1891, escreve entre 1897 e 1898, revisa entre 1903 e 1904 e só é publicada em 1909, com o título Os Náufragos do Jonathan, numa versão modificada por seu filho Michel Verne.
4- Verne foi eleito conselheiro municipal desde 1888.
5- É no segundo piso que estão localizados o estúdio e a biblioteca de Verne.
6- Na verdade, foi em 9 de março de 1886 que Gaston Verne, em meio a uma crise de paranóia, fere seu tio com um disparo de revólver. Porém, Verne já havia vendido seu iate um mês antes, em 15 de fevereiro de 1886, certamente por razões financeiras.
7- As pinturas citadas foram objeto de uma intervenção de Verne no Conselho Municipal em sua sessão de 13 de maio de 1891. Ali, debateu-se sua eventual transferência a um museu.


Poderão encontrar a tradução desta entrevista para português de Portugal no site JVernePt.

3 comentários:

Carlos Patrício disse...

Sem desmerecer as outras, essa foi a entrevista que mais gostei : a mais humana, a mais rica em pequenos detalhes que muitos podem achar até insignificantes, mas que falam muito aos admiradores de Júlio Verne.

Entre muitos momentos interessantes e reveladores, cabe destacar a seguinte passagem, onde ele fala - como sempre, com simplicidade e modéstia - da popularidade que sua imensa obra encontrou, ao longo dos anos, e entre tantas pessoas:

“Mas veja assim, esta enorme difusão se deve, em grande parte, ao fato de que em meu trabalho sempre propus como meta, ainda que em sacrifício da Arte, a de jamais deixar escapar uma só página ou uma única frase que não pudesse ser lida pelos jovens, para quem escrevo e a quem amo”.

Fernando Cesar Capovilla disse...

Que história mais bela, cândida e comovente. Dois grandes escritores, dois grandes homens e sua famílias. A descrição é tão singela e agradável e sincera que temos a impressão de estar bem lá, todos juntos, convivendo nesse encontro, que se perdeu no tempo, mas que se eternizou na abençoada escrita.

Fernando Cesar Capovilla disse...
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